ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

SINFONIA POLIFÔNICA

 

Fabrício Marques

 

Mantenham as crianças na sala. Tragam os velhos sem esperança, os homeless tentando dormir debaixo de nuvens carregadas, vira-latas uivando na janela e poetas com um pé no hospício. Afugentem publicitários, políticos, banqueiros e otários neochics: eles que façam sua suruba capitalista em outro lugar. Aqui, não.

 

É claro que não se trata de mera divisão esquemática, mocinhos versus bandidos. Mas o poeta é aquele que faz linguagem, que nomeia as coisas e precisa demarcar seu território. O poeta está sempre de porta aberta para alguém na tormenta, no precipício, no meio da tempestade.

 

O espaço, neste livro, está bem delimitado: a urgência da vida. A indignação no rodopio desse mundo, em que nada faz sentido nessa névoa de bosta e ninguém responde ao chamado. Ainda assim – a descarga reativa de meter o pau nessa joça –, é preciso escrever. Principalmente se se é um poeta que não lida com palavras mortas. Essas palavras, as vivas, são nossas, precisamos tomar posse delas.

 

Acho que é por isso que, ao ler os poemas deste livro, me lembrei do Drummond de “Os bens e o sangue”: “Meu sangue é dos que não negociaram, minha alma é dos pretos,/ minha carne dos palhaços, minha fome das nuvens,/ e não tenho outro amor a não ser o dos doidos.

 

Era preciso um poeta como o Ademir Assunção para dar conta dessa falta de sentido, desse mundo que não deu certo. Numa troca de e-mails, o poeta me disse: “Talvez isso que chamamos de poesia seja uma grande sinfonia, polifônica, regida por um maestro desconhecido. Totalmente insano, talvez. Uma polifonia dissonante, às vezes. Convergente, outras vezes”.

 

Um poeta, talvez, seja esse maestro. Ou, quem sabe, alguém que exerce a arte milenar da ventriloquia, o ato de projetar a voz dando a ilusão de que é um outro quem fala. Para alcançar essa capacidade de falar por várias personas, é fundamental manter o fôlego.

 

O maestro-ventríloquo Ademir é bem sucedido ao articular os tons das séries de poemas. Muitos chegam sujos de coloquialidade e oralidade daqueles que “ainda não abandonaram o barco e insistem/ em beber sozinhos no canto mais escuro do balcão”. Sou testemunha dessa persona: em novembro de 2010, no Circuito Interações Estéticas, Ademir esteve em Belo Horizonte com sua banda, dizendo seus textos, arrancando-os do fundo da alma. Você terá a sensação de que muitos poemas, como “Armadura em carne mole”, estão pedindo pra virar canção.

 

Esse tom se alterna com outros mais contundentes, chutando o pau da barraca. Nesses, a narrativa aproxima a violência, em diversas formas, com a violência do mundo financeiro (oscilações da bolsa), destroçando tudo em nome do capital e da propriedade.

 

E há ainda outros momentos mais líricos, como em “A canção dos peixes” (a imagem inesperada de os peixes cantando blues), “Billie Holiday na porta dos fundos” e “Polaroide”, para destacar alguns.

 

Representando uma encruzilhada desses tons todos, o irretocável “O fim e o início”, que fecha o livro.

 

Ao reger referências das mais diversas faturas, do noticiário ao mundo pop, sem hierarquizá-las, o ventríloquo está em nenhuma parte, está em todo lugar; talvez não volte nunca – ele chegou pra ficar.

 

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