ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

NOTAS SOBRE A POESIA DE FABIANO CALIXTO

 

por Reynaldo Damazio

Dois aspectos se destacam de imediato na poesia de Fabiano Calixto: de um lado, o cuidado e a atenção constantes com a materialidade da linguagem; e de outro, a abertura para os temas cotidianos, para a observação pessoal das pequenas coisas. Para leitores sectários, interessados em dividir a literatura em facções beligerantes, tal procedimento poderia indicar alguma contradição, mas Calixto lida com essa mistura de modo exemplarmente dialético. No bom sentido da dialética, aquela que vê no choque de elementos conflitantes a fagulha para o novo e para a crítica do estabelecido.

Nascido em Garanhuns, Pernambuco, em 1973, Calixto mora em Santo André e não traz em seus poemas a angustiosa sombra de João Cabral, nem faz folclore com a seca e o árido cenário nordestino. O recorte escolhido, a julgar pela epígrafe de seu primeiro trabalho (Alguns, edição do autor, 1998), está próximo da fusão pop da banda Chico Science, que soube combinar a eletrônica das guitarras com o batuque do maracatu. Se há alguma secura em seus poemas, esta se radica na construção quase epigramática e na austera contenção substantiva dos textos, mais devedora da l=a=n=g=u=a=g=e poetry norte-americana, trazida ao nosso idioma pela iniciativa laboriosa de Régis Bonvicino, que da obsessiva engenharia cabralina.

Calixto prefere a temática urbana, com sua insana geometria, seus labirintos vertiginosos de miséria e opulência, de violência e lirismo. No magical misery tour do poeta entram animais noturnos que tatuam a lua no trânsito por telhados, nuvens mutantes, poemas de John Keats, pétalas em decomposição, becos imundos, mobílias rasuradas, ensaios de Roland Barthes, baratas metafóricas, canções de Lennon e Chico Buarque, chuvas recorrentes e até baleias voadoras. Toda essa selva obscura e seu bestiário exótico não impedem, mas, ao contrário, pontuam o encontro amoroso, que revela sua força e precariedade no interior do próprio discurso poético, como notação de um lirismo em crise.

Essa assimilação dos escombros da realidade moderna, sob o escrutínio da pesquisa com a linguagem, revela não só uma marca interessante dos poemas de Calixto, mas também uma saída possível para o combalido lirismo, massacrado implacavelmente e quase soterrado pelos movimentos de vanguarda do século XX. A experiência lírica, aqui, é parte do estudo de materiais, da investigação poética, com suas incertezas e ambigüidades:

 

escrever a palavra amor num pedaço de papel
qualquer. perceber na caligrafia algo de inútil.
[...]
palavra é um desenho repetido. a forma pode nos
custar um grito. um nome esquecido. um suicídio.

 

Alguns

 

Em sua primeira coletânea de poemas, Calixto experimenta com formas e temas, num exercício bastante solto, indo de certa austeridade metalingüística (como nos textos "Declaro amor à rima", "A letra acerta" e "Hojeentreoitoeoi...") ao registro existencial-jocoso de nítida influência leminskiana (como em "A janela queima", "What's the way", "Diálogo" e "No"); do apontamento beat ("Colinas de São Thomé das Letras, MG", "Navegando nua" e "É na praia, talvez, que") à pesquisa concretista de evidente interlocução com Augusto de Campos ("Cacos de fala" e "Nada"). Convenhamos que o arco de propostas é bastante amplo, especialmente considerando que se trata de um conjunto de apenas quatorze poemas.

O que importa, entretanto, nesta primeira reunião, descontadas as hesitações do trabalho inicial de um jovem poeta, é justamente a ousadia da experimentação aliada a uma consciência muito crítica dos impasses vividos pela poesia contemporânea. Não é o caso de uma experimentação pela experimentação, num jogo vazio de fórmulas manjadas, mas de uma exploração da linguagem para tornar impressa a visão pessoal no que esta pode ter de mais radical e único, em sua incômoda transitoriedade.

Nesse sentido, o poema "Cacos da fala" se torna exemplar. Com uma colagem de fontes, com tamanhos e cores diversos, utilizando ainda o itálico, o negrito e o grifo, o poema retrata com muita propriedade e graça a cacofonia a que estamos habituados, seja nas relações pessoais, profissionais, ou até mesmo nas questões literárias. As palavras se desencontram em seu formato vário, no interior do texto, mas certas rimas cruzadas, internas ou não, provocam uma solidariedade sonora que transcende o caos babélico, fazendo com que o poema organize nossa leitura desse mundo aos frangalhos que é o nosso, povoado de "eus a esmo".

Fábrica

 

No livro Fábrica (Santo André: Alpharrabio Edições, 2000), Calixto chega a um resultado mais consistente e a um conjunto bem articulado de poemas, em que a fusão do cenário urbano deteriorado com o lirismo angustiado resulta em imagens fortes, compondo uma "coagulada paisagem". Paralelepípedos são contaminados pela ferrugem; máquinas viram sucata de um pesadelo histórico inescapável; o suor contamina a noite, enquanto relâmpagos aprisionam a escuridão; granizos desenham partituras nos vidros que enquadram nossa solidão; os muros nas ruas são tabuleiros de xadrez, ou muros-vitiligo; as vértebras se cobrem de chumbo. Em suma, a cidade pesa no corpo e deixa cicatrizes profundas. Palavras rasuradas na página, ou na pele.

A secura agora é o fim de um processo de depuração do discurso, praticamente reduzido aos seus elementos essenciais. O eu lírico na metrópole doente do final do século XX luta com o silêncio, arranca migalhas do nada e está como que submetido ao mínimo dizível. E esse farrapo de discurso poético pode vagar intransitivo entre estupidez e indiferença; pode até não encontrar seu objeto e tornar-se um enigma tautológico. Mas o eu lírico aqui está impregnado pelo cenário. Acuado na sala de casa, vê as imagens saltarem da sola do sapato, tudo aquilo que carregou em sua trajetória agônica pelas ruelas imundas e fantasmagóricas.

Curiosamente, há no livro Fábrica um poema intitulado "joão cabral de melo neto" (assim mesmo, todo em minúsculas), que se não contradiz o mestre, estabelece com ele um diálogo conflituoso, mas fértil. Formado por oito dísticos quase simétricos, o poema fala de uma pedra que não é o objeto didático desentranhado na realidade bruta e sem sentido, mas uma "relíquia íntima", "alquimia (...) dentro das tripas". Fala também do processo que faz a dor se tornar palavra. Ou ainda do interesse nas "formas abertas ao estalo", "ao pulso". João Cabral trouxe para a poesia brasileira um trabalho com a linguagem muito peculiar, infiltrando argamassa e ferro nas fundações do poema. Assim como Guimarães Rosa fez com a narrativa, num outro sentido, contaminando-a nas raízes com praga da metáfora e da melodia poéticas. Ambos elevaram sobremaneira a exigência com o rigoroso estudo dos instrumentos poéticos e de sua aplicação ao real.

Talvez caiba às novas gerações fertilizar essa arquitetura cerebral e epifânica com o lodo do cotidiano, as ranhuras na superfície da cidade e o desgaste dos materiais poéticos, com os abismos de um país desmembrado, mais afeito as ruínas que à art déco. História, memória e cidadania em ruínas. Literatura em ruínas.

Um mundo só

A retomada explícita do lirismo na trajetória de Calixto, sob o recorte amoroso, se dá no livreto Um mundo só para cada par (Santo André: Alpharrabio Edições, 2001), em co-autoria com Tarso de Melo e Kleber Mantovani. Nesta obra de formato artesanal, fora de comércio, cada autor participa com seis poemas sobre a espinhosa questão do amor. Engana-se quem pensar que a rendição ao temário amoroso possa denotar algum retrocesso ou capitulação. O poeta tem consciência de que o sentimento é também uma forma de exílio, de perdição entre "ruídos, trevas, estrelas". O turbilhão da experiência amorosa não serve de alienação, mas acentua a consciência do distanciamento entre o mundo e nossa percepção: "a terra// que habitamos nada sabe da doçura./ persistimos em não acreditar".

O amor se torna uma maneira de agudizar nossa solidão. O poema não pode mais existir como mera afirmação do sentimento amoroso, numa exaltação narcísica e tola, mas será a crítica implacável dessa experiência sempre falha, incompleta, ambígua. O poema põe o amor em dúvida, na medida em que ele próprio se coloca em dúvida, como mecanismo de linguagem: "não sinto nada e, às vezes,/ penso que isso é amor".

Esse lirismo em crise, urbano, fruto de uma cidadania sem estatuto de felicidade e órfã de utopias, está no centro da poesia de Fabiano Calixto.  Proposta arriscada, que vem sendo executada sem estardalhaço, mas com a consciência acesa e alguma canção ao fundo.

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Leia também poemas de Fabiano Calixto e de Reynaldo Damazio .

 

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Reynaldo Damazio é editor da Unimarco Editora e do site Weblivros. Autor de Nu entre nuvens (São Paulo: Ciência do Acidente, 2001).

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