ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A POÉTICA SINCRÔNICA DE HAROLDO DE CAMPOS

 

Cilene Trindade Rohr

 

Segundo Haroldo de Campos, há duas maneiras de abordar o fenômeno literário. O critério histórico, chamado também de diacrônico, e o critério estético-criativo, que pode ser denominado sincrônico. Ao crítico diacrônico interessa o critério histórico ou estudo diacrônico que consiste na acumulação dos fatos e seus desdobramentos no eixo do tempo, isto é, um estudo meramente documentário em detrimento de um trabalho que valorize esteticamente a obra.

Essa observação situa a discussão sobre o papel do crítico diacrônico, na medida em que ele aceita, sem questionar, a ordem dos fatos que se estabelecem no eixo de sucessão e, além disso, desdenha dos que ousam renovar a tradição. Campos critica, rigorosamente, a falta de originalidade dos críticos diacrônicos que, por comodismo, preferem se apoiar no que já está pronto, ao invés de inovar a tradição, por meio de um estudo crítico, e, assim, dinamizar a criação a partir de uma nova perspectiva.

Sem desprezar "a tarefa da poética diacrônica como trabalho de levantamento e demarcação do terreno." (CAMPOS, 1969, p. 207), Campos aponta-lhe as falhas para, em seguida, apresentar a poética sincrônica, "muitíssimo menos praticada, mas cuja função tem um caráter eminentemente crítico e retificador sobre as coisas julgadas da poética histórica." (CAMPOS, 1969, p. 207). Para Campos, a poética sincrônica está inserida na história e o crítico apoiado por um estudo estético-criativo ressaltará o valor da obra literária observando o momento de sua produção, bem como o seu presente atual, pois, assim, estará renovando e atualizando a obra de arte. Mas essa inovação só se estabelece, à medida que nos posicionamos criticamente em relação aos padrões impostos pela tradição.

Para renovar essa tradição, é necessário revisar em profundidade nosso passado poético por meio de uma perspectiva sincrônica e, para isso, é preciso criar uma Antologia da Poesia Brasileira de Invenção, diz Campos. Essa Antologia contribuiria para a renovação de formas em nossa poesia e ampliaria e diversificaria nosso repertório de informação estética.  Campos observa que é necessário reconhecer o valor da obra sem classificar alguns poetas em desprezo de outros, pois o que interessa para o crítico é apontar o valor que cada obra apresenta dentro do seu momento de criação, atualizado pelo presente.

O conceito de poética sincrônica, pensado por Campos, se apóia na teoria de Roman Jakobson adotada por Gérard Genette a propósito da "História Estrutural da Literatura" que nada mais é que a atualização e a renovação de perspectivas diacrônicas, a partir de cortes sincrônicos. "A poética sincrônica procura agir crítica e retificadoramente sobre as coisas julgadas da poética diacrônica." (CAMPOS, 1969, p. 214).

A escolha por uma poética sincrônica, segundo Campos, implica em um método que visa um ponto de vista estrutural, isto é, um estudo que observa e analisa a obra em sua forma, atribuindo-lhe um valor estético criativo capaz de responder a possíveis questionamentos. Ele insiste nessa metodologia porque clama, em seus textos, por uma renovação da poética brasileira a partir de um estudo que possibilite uma leitura da época de criação da obra de arte, à luz de concepções estético-atuais, a fim de se obter uma relação dialética de integração e complementaridade entre sincronia e diacronia para fazer emergir o valor estético do texto literário. De acordo com Campos, esse é, sem dúvida, o maior desafio da poética sincrônica.

Nesse sentido, é que, ao citar Ezra Pound, Campos esclarece que o valor do crítico literário é reconhecido, não por seus argumentos expostos e sim, pela sua escolha metodológica para avaliar a obra de arte. Essa escolha deve contemplar uma "postura histórico-evolutiva incluindo sempre, necessariamente, um quadro sincrônico assumido como tábua de valor." (CAMPOS, 1969, p. 222). Ao distinguir, nos termos de Saussure, a dicotomia entre diacronia e sincronia, Campos diferencia o conceito de poética sincrônica, pensado pelos críticos de mentalidade diacrônica, da sua proposta inovadora de poética sincrônica estético-evolutiva. Para ele, o quadro sincrônico adotado pelos críticos diacrônicos é, também, um quadro historicizado, ou seja, está subordinado à tradição. Já a poética sincrônica, definida nos termos do poeta concretista, "está imperativamente vinculada às necessidades criativas do presente." (CAMPOS, 1969, p. 222). Ao invés de ser determinada pela descrição sincrônica, a poética de Campos quer substituí-la com a finalidade de revisar o critério diacrônico.

O que o poeta nos oferece com o estudo da relação dialética entre diacronia e sincronia é um método diferente quanto à maneira de abordar o texto literário. Esse método oferece subsídios para a renovação de uma poética pautada na análise superficial e linear do texto literário. É preciso elevar a obra de arte e outorgar-lhe o devido valor, resgatando escritores, poetas e obras da obscuridade a que foram submetidos por tanto tempo. Todavia, a proposta de Campos não tem recebido a atenção merecida por parte da crítica e tem sido muito pouco adotada por ela. Esse fato ocorre, não somente por comodismo, mas, sobretudo, porque os textos de Campos possuem uma linguagem marcada pelo caráter desafiador e confrontador que despertam no leitor, que se intitula crítico, a rejeição diante de uma abordagem que é diferente e inovadora. Talvez, tal rejeição só ocorra porque esse leitor ainda não foi incitado para despertar sua consciência crítica e privilegiar o novo e, conseqüentemente, assim como certos críticos, continua valorizando o lugar comum.

 

Referência bibliográfica:

CAMPOS, Haroldo de. Poética Sincrônica, O Samurai e o Kakemono e Diacronia e sincronia In: A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1969.

 

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Cilene Trindade Rohr é mestranda em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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