ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

A POESIA EM TORNO DO UT PICTURA

 

Antônio Andrade (UFF - CNPQ)  

 

No livro Crisantempo: no espaço curvo nasce um[1], de Haroldo de Campos, a relação entre diferentes linguagens se faz marcante mais pela intertextualidade de muitos de seus textos com a música (ex. "this planetary music for mortal ears" e "frozen music"), a xilografia (ex. "o elogio da xilo"), a fotografia (ex. "nékuia: fogo azul em Cubatão"), o cinema (ex. "um lance de godardos"), a instalação (ex. "sétima instalação (bwg)"), etc., do que pela exploração dos recursos gráficos ou pela presença de suportes distintos, tais como as ilustrações e o CD que acompanham a edição. Sinal de que, embora o caráter sincrético da linguagem "verbivocovisual" concretista tenha deixado marcas indeléveis na poesia atual, a produção haroldiana procura flexibilizar os paradigmas que nortearam a vanguarda concreta.

E se o que unifica as diferentes vertentes da produção poética contemporânea é a reflexão crítica sobre o esvaziamento gerado pela proliferação do visível, em Haroldo, o que passa a interessar não é mais a composição gráfica como forma de comunicação visual, fazendo do poema um objeto, mas, sobretudo, a relação entre poesia e pintura, linguagens que refletem sobre a visualidade. Desse modo, muitos de seus textos, além de incorporarem como mote de construção poética categorias pertencentes ao universo plástico, constituem um esforço de análise dos textos pictóricos. Ou seja, ao contrário de seu irmão Augusto de Campos, que vem dando continuidade de maneira cada vez mais radical ao sincretismo da estética concreta[2], Haroldo prefere, muitas vezes, trabalhar sob a clave do ut pictura poesis. Assim interioriza determinados procedimentos da linguagem pictórica sem implodir o verso, como o faz Augusto, e sem se afastar da reflexão sob a especificidade da lírica.

Aliás, essa questão da revalorização do verso é ponto fundamental para se compreender a divergência entre a poética haroldiana pós-80 e os pressupostos do concretismo. Veja-se um fragmento do "Plano-Piloto da Poesia Concreta" (1958): "poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas. dado por encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal)"[3]. Isso confirma a postura crítica renovadora que marca a produção haroldiana. Lembre-se ainda que, anteriormente a essa revalorização do verso, ele havia explorado, em Galáxias, o diálogo entre poesia e prosa como uma forma até mais radical de evitar a transformação do espaço gráfico em agente estrutural do texto, a exemplo do ideograma. Para entendermos então como essa modalização do ideograma representa uma nova forma de se refletir sobre a visualidade contemporânea, procederemos à análise do poema de abertura da série ut pictura, incluída em Crisantempo, em homenagem à pintora nipo-brasileira Tomie Ohtake.

Vale ressaltar que não só ela como também outros pintores homenageados por Haroldo nessa séria fizeram parte, pelo menos em determinada época, da vanguarda da pintura concreta e do Grupo Ruptura em São Paulo, ambos movimentos que possuíam laços estreitos com as idéias com as idéias do grupo que publicava na revista Noigrandes. Contudo eles, assim como Haroldo, também buscavam novas formas de expressão, traçando caminhos individuais com o decorrer do tempo. Apesar de todos os nove poemas dessa série remeterem de imediato ao método ecfrástico - que grosso modo é a transposição do texto plástico para o verbal -, apenas o primeiro traz uma reprodução: a ilustração lunar de Tomie para Hagoromo de Zeami, peça do teatro clássico nô, traduzida por Haroldo em 1993, colocada na primeira página, ao lado do poema em homenagem a ela.  No entanto essa reprodução é apresentada num tom de sépia equivalente ao de todas as demais ilustrações e fotografias do livro, o que nos leva a crer num apagamento proposital das distinções cromáticas na figura torna ainda mais instigante o movimento de metamorfose das cores no poema:

tsuki

o violeta invade
o brancocinza da lua
semiluna o azul
no amarelo da lua negra
branquiluna barcalua
vermelha

                               tomie ohtake

enluara o papel :
na noite nanquim
a tennin                   vórtice de plumas sereníssimas
                d a n ç a

(p. 123)

Ou seja, é como se poema e imagem não tivessem uma relação meramente reiterativa. Pelo contrário, a ausência da cor na imagem faz com que essa categoria se enriqueça na construção do discurso poético, e que ainda crie novas possibilidades de visualização da imagem criada pela pintora. Nesse caso, a presença da reprodução significa mais pelo que nela se configura como ausência do que como presença. Esse pensamento pode talvez ser associado à compreensão merleau-pontyana da visibilidade como um enigma - algo que não está dado - por ser ela formada por inúmeros fantasmas, tais como luz, sombra, reflexo, cor. Para Merleau-Ponty, o grande lance da pintura é trazer para o externo uma visibilidade que só se cria através do interno[4]. E, desse modo, o cotejo da ilustração de Tomie com o poema de Haroldo encena o entrelaçamento dos discursos poético e pictórico na construção da imagem intersemiótica, na medida em que no poema se atribui ao objeto plástico um cromatismo imaginário.

Tomando de empréstimo nessa leitura algumas noções da semiótica plástica, tentaremos identificar tanto no plano de expressão do texto quanto no da imagem como se constrói essa relação. Nesse sentido, destacamos no poema três procedimentos discursivos pela personificação das cores como actantes, evidenciada, na sintaxe, na relação sujeito-predicado; no cavalgamento do ritmo através da quebra sintática do verso e na criação dos neologismos - "brancocinza", "branquiluna" e "barcalua" - que indicam, numa justaposição de cores e de formas, a passagem metonímica de um estágio a outro de visibilidade. Esses procedimentos do texto verbal correspondem a três outros procedimentos do plano da expressão do texto pictórico, e isso não apenas da figura em questão, mas de toda a série pictórica de Tomie. Isto é, o poema consegue empreender uma econômica captação de suas principais isotopias, assim como a intertextualidade com as semioses ohtakianas também indicia uma série de isotopias do discurso poético haroldiano.

Em primeiro lugar, a antropomorfização das cores assinala a importância do cromatismo como um dos principais formantes da obra de Tomie Ohtake. Conhecida pela sua bela exploração das possibilidades da cor - principalmente dos azuis, brancos e vermelhos que ganham inúmeros matizes em sua pintura -, Tomie realiza, na linha de Rohtko, um sistema semi-simbólico[5] sobre a categoria cromática, em que sobram apenas vestígios de figuração, já que, parafraseando Argan, o signo aí é reabsorvido "na calma tranqüila da cor (...) levemente movida por passagens de tom"[6]. Mas em Tomie, diferentemente de Rothko, não há uma identidade total entre cor e espaço, pois nela não se apagam totalmente os contrastes entre formas, construídas ora por trações retilíneos, que empreendem uma divisão do espaço da tela, ora por traços curvilíneos, que constroem uma espécie de figuração lunar, centralizada na tela em contraste com o fundo.

Já com relação ao enjambement, que constrói, através do mecanismo de interrupção e retomada, um movimento ondular no plano da expressão da poesia, podemos relacioná-la também às ondulações e circunvoluções fortemente presentes na pintura de Tomie. E o interessante é que nela esse movimento inter-relaciona todos os formantes plásticos: eidéticos, cromáticos, topológicos e matéricos. Note-se a esse respeito uma paradigmática tela em que se pinta sem contornos uma linha ondulada ascendente vermelha, em contraste com o fundo branco, indiciando assim as idéias de passagem e elevação, que, segundo o modelo da semiótica tensiva, representariam a própria noção de produção dos sentidos como intensificação. Ou ainda as várias telas em que, ora através dos brancos que provocam o jogo da luz, ora através do próprio empastamento da pincelada, faz emergir formas da superfície da cor, as quais, além de atentar para a própria materialidade da pintura, representam um movimento, quer circular quer ondulado, que por vezes remete à elipse. A nota sobre esse tipo de movimento sinuoso, construído pelo próprio ritmo interno da pintura, pode inclusive ser relacionada à reflexão sobre o tempo histórico, que tem muito mais a ver com as formas elípticas e arabescas do que lineares, de maneira que, conforme verificou Benjamim, o presente é sempre constituído pelas tensões entre ruínas do passado e a expectativa do futuro, afastando-se assim da idéia de progressão[7].

E finalmente com relação ao procedimento metonímico, podemos também associá-lo ao próprio método da composição cromático-eidético de Tomie, na medida em que nela a sutil mutação de cores e formas por contigüidade dentro de planos aparentemente inívocos faz refletir, como no poema, sobre a idéia de indecidibilidade do figurativo - ou, de outro modo, sobre a multiplicidade imagética que pode advir da exploração do figural[8]. Por isso também, a referência pictórica da figura lunar se transmuta em "barcalua" no poema de Haroldo, além de nele passar de um estado cromático a outro, como se o texto recriasse o colorido de maneira análoga ao nascimento da cor na paleta. Lembre-se ainda que essa automatização do signo "lua" é empreendida também pela pintura de Tomie através de sua duplicação e/ou redimensionamento topológico no espaço da tela. Esse paralelo entre procedimentos textuais e entre atividades relativas a distintas semioses artísticas recorda-nos o conceito de "contágio" intersemiótico, utilizado por Ana Claudia de Oliveira num ensaio em que analisa o quadro La joie de vivre, de Henri Matisse, demonstrando como que nele a configuração de um olhar dançarino conviva a participação de diferentes ordens sensoriais na construção da pintura[9]. Em "tsuki", Haroldo solicita argutamente as idéias de dança, movimento e leveza para demonstrar, ao mesmo tempo, a volatilidade do significante verbal e o caráter cambiante das imagens pictóricas.

Vale ressaltar ainda, nesse poema, a reversibilidade dos papéis de enunciador e enunciatário, pois o sujeito aí é ao mesmo tempo receptor e produtor da mensagem poético-pictórica. Esse caráter indecidível dos papéis, das formas e das cores, em ambos os discursos, demonstra que o tema do ut pictura poesis representa um modo de leitura em aberto, permitindo, como já apontamos, através da metonímia, inúmeras analogias imaginativas. Fazendo inclusive uma leitura intertextual da obra de Haroldo, vamos perceber que a metonímia configura a partir da revolução de Galáxias um procedimento fundamental em sua obra, contrapondo a tendência concretista à concentração formal a uma proliferação significante que enceta aquele mesmo tipo de movimento ondular da pintura de Tomie, figurativizado em Haroldo pela imagem do "torvelinho". Mas o interessante é que, em Crisantempo, a metonímia encerra as tensões entre concentração e dispersão, figuratividade e abstração, rigor e fruição, que marcam a série ecfrástica desse livro.

Note-se, por exemplo, como em outro poema dessa mesma série, "a oniroteca do wladyslaw", Haroldo também valoriza o diálogo intersemiótico entre poesia e pintura como modo de desnaturalizar a representação realista vinculada às categorias plásticas - desenho/cor - e lingüísticas - significante/significado -, encenando assim o método pictural empreendido por Anatol Wladyslaw como um suicídio de imagens que se atiram "da janela / aberta / da cor". E ainda, como em mais um poema, agora em homenagem a Hermelindo Fiaminghi, internaliza o contato com a própria materialidade da pintura a ponto de forjar uma sintaxe deslizante em associação às texturas movediças e à imbricação de cores e luzes na tela:

geômetra
amoroso da reta
e da curva
precisas
das retículas sutis
que se reticulam
como texturas movediças
(o violeta entrando pelo verde
pervasivo
insinuante
feito um véu que desvela outro
véu)

(p. 125)

Já na sua forma de se referir ao pintor - "geômetra amoroso" -, Haroldo ressalta o rigor construtivo da técnica pictural, ainda que descreva a experiência pictórica aí como um êxtase da visão:

inventor e mestre
voa
em sua esfera ambital
sustentado pelo motor fortefrágil
do coração
- central coralina
de onde irradia um
jocundo artesanato de
formas de beleza
serenamente domadas para o
gozo plenipotenciário do olho

(p. 126, grifos nossos)

Mesura e serenidade, invenção e técnica, vertigem e racionalização. Novamente aqui essas noções ecoam a tensão que configura, na verdade, a própria renovação da linguagem haroldiana numa vertente pós-vanguardista.

*

Antonio Andrade é mestrando em Literatura Brasileira e Teorias da Literatura pela Universidade Federal Fluminense, bolsista do CNPq e orientando da profa. dra. Celia Pedrosa. Sua dissertação chama-se "Galáxias Neobarrocas: poesia e visualidade em Haroldo de Campos".



[1] CAMPOS, Haroldo de. Crisantempo: no espaço curvo nasce um. São Paulo Editora Perspectiva, 1998.

[2] Veja-se um poema exemplar como "cançãonoturnadabaleia" (1990), em que, através da disposição topológica na página, da utilização de recursos tipográficos, de repetição de letras como forma de preenchimento dos vazios e das oposições branco/negro, letra/fundo, se configura uma forma de texto sincrético que imbrica som, imagem e sentido, seja utilizando apenas o suporte editorial seja através de outras medias. CF. sobre isso o ensaio de Flora Süssekind, "Coro a um - Notas sobre a cançãonoturnadabaleia", Gragoatá 12, 1o Semestre de 2002, p. 23-46. Nele, a autora analisa o que ela chama de "construção coral" da poesia de Augusto de Campos, desvelando assim a multiplicidade enunciativa reforçada pelo sincretismo de linguagens. Dessa maneira constróis sua análise do poema através de suas releituras (oralizada e videografada).

[3] Apud TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro - apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. Petrópolis: Editora Vozes, p. 403.

[4] Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

[5] Segundo Thurlemann, os sistemas semi-simbólicos são "sistemas significantes caracterizados não pela conformidade entre as unidades do plano do conteúdo e do plano da expressão, mas pela correlação entre categorias dos dois planos" (THURLEMANN, In: GREIMAS, COURTÉS (orgs.) Sémiotique 2: dictionnare raisonné de la théoria du langage. Paris: Hachette, 1986).

[6] ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 623.

[7] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: ______. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

[8] FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l´oeil et de l´esprit: pour une sémiotique plastique. Amsterdam: Hadés-Benjamins, 1985.

[9] OLIVEIRA, Ana Claudia de. A dança das ordens sensoriais. In: OLIVEIRA e LANDOWSKI (orgs.). Do inteligível ao sensível. São Paulo: Educ, 1995, p. 179.

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