ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

T. S. ELIOT, EZRA POUND E WALT WHITMAN: DOIS PACTOS

 

 

André Cechinel

 

 

Depois de concluída a exaustiva revisão de The Waste Land, empreendida por Ezra Pound e Vivien Eliot (que resultou na eliminação de quase metade dos versos iniciais da obra), T. S. Eliot acrescentou ao poema uma série de notas explicativas, sob o pretexto de, a rigor, traçar um mapa das referências por ele aludidas ao longo das cinco seções que compõem o clássico de 1922. O papel das notas tem sido repetidas vezes discutido, pois, a bem da verdade, após o corte operado no poema, o número de versos da versão final não seria suficiente para fechar um livro com apenas um poema, tal como Eliot desejava; assim, possivelmente para ampliar o número de páginas - ou seja, para fins editoriais -, Eliot teria adicionado tais notas.

 

Seja como for, a questão permanece inteiramente aberta, fato que apenas enfatiza ainda mais o caráter inconclusivo das "Notes on The Waste Land”. Com efeito, quando a crítica se pronuncia acerca das notas de Eliot, é quase sempre para esse tom de incompletude que os comentários se voltam – apenas para citar um exemplo, George Williamson, em seu clássico A Reader’s Guide to T. S. Eliot (1998, p. 120), aponta exatamente para o caráter frustrante das notas, isto é, seu posicionamento sempre fugaz, inacabado. Em poucas palavras, ao mesmo tempo em que esboça uma cartografia de suas fontes, Eliot nos "engana", ou melhor, chama a atenção do leitor para pontos que, no limite, permanecem inteiramente inexplicados, movediços. É o caso da observação sobre o personagem Tirésias, que o coloca na posição de personagem central do poema, aquele que unificaria todos os demais versos; conforme argumenta Graham Hough, “who was Tirésias? A man who had also been a woman, who lived forever and could foretell the future. That is to say, not a single human consciousness, but a mythological catch-all, and a unifying factor of no effect whatever” (1960, p. 31). Em suma, as notas de Eliot não revelariam senão um falso desejo de revelar.  

 

Pode-se argumentar, entretanto, que o caráter esclarecedor das notas para The Waste Land não está no que elas de fato desnudam ou mapeiam, mas sim naquilo que ocultam, nos pontos sobre os quais elas propositalmente silenciam. Ora, são muitos os especialistas em Eliot que vêem uma clara influência de Walt Whitman nos versos de abertura do poema de 1922, principalmente devido à aparição dos Lilacs (“Lilases”) na segunda linha: "April is the cruellest month, breeding / Lilacs out of the dead land, mixing". Segundo Harold Bloom, a referência é clara: “the mention of ‘lilacs’, as well as several other important details in the poem, echoes Walt Whitman’s elegy for Lincoln, ‘When Lilacs Last in the Dooryard Bloom’d’” (1999, p. 41). Para B. C. Southam, em sua análise sistemática intitulada A Guide to the Selected Poems of T. S. Eliot, a menção é quase óbvia, embora ecoe também a leitura de outros poetas (1996, p. 140).

 

Apesar das leituras que caminham nesse sentido, T. S. Eliot, em suas notas, ignora absolutamente a figura de Walt Whitman. Ora, temos aqui um dado de grande interesse: Whitman, escritor que possivelmente emprestou a Eliot a imagem dos lilases - imagem que, dispensável dizer, alia morte e vida, sustentando, pois, a tensão do poema – não é citado nas notas acrescentadas ao poema, que deveriam, a princípio, elucidar ao leitor as referências que constam implícita ou explicitamente ao longo das cinco seções. Eis o dilema de T. S. Eliot, que constitui, na verdade, uma espécie de falso dilema, já que suas notas nos levam sempre para “um outro lugar”: abrir mão da imagem dos lilases, que lhe seria fundamental, ou fazer referência a Whitman? Aliás, por que isso constituiria um dilema?  

 

Para responder tal pergunta, obviamente, sem fins conclusivos, pode-se lançar mão dos ensaios teóricos de T. S. Eliot, que muitas vezes expõem claramente aquilo o poeta objetiva em seus versos, como no caso de “Tradition and the Individual Talent”, datado também de 1922. Dada a sincronia das datas, vale a pena adentrar o importante ensaio de Eliot. Em seu texto, o autor comenta que “nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significação completa sozinho. Seu significado e a apreciação que dele fazemos constituem a apreciação de sua relação com os poetas e os artistas mortos” (1989, p. 39). Em outras palavras, qualquer poeta só poderia encontrar sua individualidade estando para além de si mesmo, isto é, matando-se como individualidade pura propriamente dita. Mais adiante, no mesmo ensaio, o poeta declara que "não é em suas emoções pessoais, as emoções induzidas por episódios particulares em sua vida, que o poeta se torna, de algum modo, notável ou interessante [...]" (1989, p. 46). Mais uma vez, T. S. Eliot opõe-se à idéia de poesia como expressão de sentimentos individuais, recolhidos em um momento de tranqüilidade (tese defendida por poetas românticos como William Wordsworth e Samuel Taylor Colerigde), para situá-la em um plano conjunto, que só se daria a partir do acompanhamento do que seria a tradição literária.

 

A rigor, essa posição é assumida por Eliot em inúmeros ensaios, como ocorre novamente, por exemplo, em "The Function of Criticism" (1923), quando comenta que “somente o homem que tem tanto a dar a ponto de se esquecer de si próprio em sua obra pode se dispor a colaborar, a trocar idéias, a contribuir" (1989, p. 50). Como se sabe, Eliot esquece a si próprio em seus poemas, não só quando dá espaço à aparição de toda uma tradição literária passada, mas inclusive no modo como acata tranquilamente as revisões que lhe são recomendadas por seu mestre Ezra Pound, Il Miglior Fabbro.

 

Ora, citar Walt Whitman em seu poema ou em suas notas seria, a rigor, trair suas posições teóricas, seu ataque ao “eu” romântico que se impõe a todo o momento. Não há dúvidas: para T. S. Eliot, a poesia de Whitman era parte integrante de um desejo confessional romântico, de um autor que, ilhado, transpõe suas iluminações para o papel. Alguns versos de Leaves of Grass deixam claro esse “eu” que insiste em aparecer como força individualizante, ponto de convergência dos versos: “Walt Whitman, a kosmos, of Manhattan the son, / Turbulent, fleshy, sensual, eating, drinking and breeding”; ou ainda, “I CELEBRATE myself, and sing myself, / And what I assume you shall assume,”.

 

Walt Whitman, poeta da democracia, cantor das diversas vozes, não era para Eliot um poeta que ultrapassava os limites da inspiração. No entanto, a importância de Whitman não podia ser negada, e sua imagística acaba “contaminando” os versos de The Waste Land – e Eliot perde-se a si mesmo, uma vez mais. É justamente esse o acordo tácito que Eliot estabelece com Whitman. Seu papel preponderante era irrecusável, já que, afinal de contas, foi Whitman quem primeiramente explorou à exaustão os limites do verso, confundindo poesia e prosa continuamente. Ao situar o poeta das “folhas de relva” em seus versos, sem explicitá-lo nas notas, Eliot nos coloca a par do embate travado com a tradição, do peso que significa ser herdeiro do legado do autor romântico. Em suma, T. S. Eliot faz um pacto com Whitman, semelhante àquele feito anteriormente por Pound no poema de 1916 intitulado "A Pact". Em nome da poesia, vale inclusive receber a herança de um “pig-headed father”:

 

 

I make a pact with you, Walt Whitman--
I have detested you long enough.
I come to you as a grown child
Who has had a pig-headed father;
I am old enough now to make friends.
It was you that broke the new wood
Now is a time for carving.
We have one sap and one root--
Let there be commerce between us.  

 

 

Pound deixa claro seu propósito desde o título do poema, “Um Pacto”: não se trata de reavaliar a obra poética de Whitman, mas sim – e apenas – de reconhecer sua importância inaugural, de fazer uma espécie de concessão àquele que “broke the new wood”. É nesse sentido que o autor se posiciona como filho crescido de Whitman (“I come to you as a grown child”), isto é, Pound reconhece o papel da tradição, muito embora essa por vezes se mostre traidora de seus preceitos literários; segue disso, novamente, a idéia de um "pig-headed father”. A bem da verdade, Pound refere-se claramente à origem comum dos dois poetas, pois, como se sabe, apesar de ter vivido boa parte de sua vida na Europa, o poeta de "Os Cantos" nasceu nos Estados Unidos, assim, aliás, como T. S. Eliot, que também abraçou um exílio voluntário no continente europeu.

 

A raiz comum de Whitman e Pound pode ser vista, enfim, na idéia por ambos partilhada acerca do papel da tradição, da importância de um trabalho seqüencial. Nas palavras de Pound, "o homem lúcido não pode permanecer quieto e resignado enquanto seu país deixa que a literatura decaia e que os bons escritores sejam desprezados [...]” (1973, p. 37); a noção de “Paideuma”, em Pound, parece dar conta dessa vontade de preservar. Nos versos de Whitman, por sua vez, “POETS to come! orators, singers, musicians to come! / Not to-day is to justify me, and answer what I am for; / But you, a new brood, native, athletic, continental, greater than before known, / Arouse! Arouse—for you must justify me—you must answer.” Em suas palavras dirigidas aos poetas futuros ("Poets to Come"), Whitman exige continuidade, pede que seu trabalho provoque novos estímulos.            

 

Mas onde encontrar a imagem de um “pig-headed father”, que não só impulsiona Pound a fazer um pacto de paz, para que haja comércio entre pai e filho, mas que também leva Eliot a ocultar a presença de Whitman em suas referências? Se no caso do poeta de The Waste Land a reposta já foi sugerida, em Pound bastaria lembrar o ensaio “What I Feel About Walt Whitman”, quando ele declara ser uma sorte de Whitman capaz de usar “a collar and a dress shirt”. Colocado de outra forma, o que Pound indica aqui é a linguagem “excessiva” de Whitman, que insiste em cantar o “eu” sem mostrar muito apreço por cuidados formais. Ora, os versos adjetivados de Whitman certamente contrastam com a idéia de Pound sobre poesia, segundo a qual “a incompetência se manifesta no uso de palavras demasiadas” (1973, p. 63). No limite, poderíamos lembrar os paradigmas poéticos expostos pelo poeta dos "Cantos" no ensaio chamado "A Retrospect”: tratamento direto do objeto e economia lingüística formam a base do fazer poético.     

 

Resumidamente, o vínculo entre Eliot/Pound e Whitman reserva, certamente, algumas ambivalências, principalmente por operar por meio de um jogo de alusão silenciosa, digamos. Pound, ao mesmo tempo em que afirma que Walt Whitman é a própria expressão estadunidense (como o faz no ensaio já aludido, “What I Feel About Walt Whitman”), chama-o de pai desajustado – seu intuito de travar um pacto com Whitman se dá muito mais pela vontade de solidificar uma tradição do que de ressaltar o aspecto renovador da poesia do autor de Leaves of Grass. O caso de T. S. Eliot expressa uma relação ainda mais complicada, um pacto muito mais intricado: as notas de The Waste Land, naquilo que silenciam, revelam uma alusão tanto inevitável quanto indesejada. As lilases de Whitman, escolhidas por Eliot para aliar o mais cruel dos meses aos novos frutos que brotam da terra, mantém esse jogo dual nas próprias notas adicionadas ao poema de 1922: não explicitadas, permitem o contrato entre os dois autores. Estão assinados os dois pactos, enfim.

 

 

Referências bibliográficas:

 

BLOOM, H. Bloom’s major poets: T. S. Eliot. New York: Chelsea House Publishers, 1999. 87p.

 

ELIOT, T. S. Ensaios (Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira). São Paulo: Art, 1989. 256p.

 

HOUGH, Graham. Reflections on a Literary Revolution. Washington, DC: The Catholic University of America Press, 1960. 127p.

 

POUND, Ezra. ABC da Literatura (Tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes). 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1973. 218p.

 

SOUTHAM, B. C. A Guide to the Selected Poems of T. S. Eliot. 6th ed. New York: Harcourt, Brace & World, Inc., 1996. 288p.

 

WILLIAMSON, George. A Reader’s Guide to T. S. Eliot: a poem-by-poem analysis. Syracuse University Press, 1998. 248p.

 

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André Cechinel é Doutorando em Teoria Literária pela UFSC. Defendeu mestrado com pesquisa sobre o poema The Waste Land, de T. S. Eliot, sob orientação do professor Dr. Sérgio Medeiros. E-mail: andrecechinel@yahoo.com.br.

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