ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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ZUNÁI EM DEBATE

 

Por que editar uma revista literária hoje?


Claudio Willer: Ao longo dos últimos anos, houve um crescimento na quantidade e qualidade das revistas literárias brasileiras, bem como de suplementos e jornais igualmente dedicados à poesia, narrativa em prosa e crítica. Isso, focalizando apenas aquelas impressas. Eletrônicas, então, nem falar. Lembro-me de que, na primeira metade da década de 1990, depois do fechamento de Leia, o Brasil parecia um deserto de periódicos literários. Algo deprimente, se comparado à quantidade de periódicos literários do México ou da Argentina, entre outros lugares. O panorama começou a mudar com a criação de Cult, se não me engano em 1996. Mesmo assim, ao preparar em 1998 um encontro de periódicos literários ibero-americanos, coordenado por Horácio Costa, de brasileiros não havia quase ninguém para convidar. Desde então, houve um salto - em 2000, na minha última iniciativa pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, foi possível fazer um ciclo de várias sessões com organizadores dessas revistas e poetas convidados por eles, reunindo as publicações tradicionais, como o Suplemento de Minas Gerais e a Revista de Poesia de São Paulo, e as novidades, como Medusa e Babel. No ano seguinte, 2001, fui convidado pelo Instituto Goethe para organizar outro ciclo desses. Sobraram periódicos. Os convidados foram: Cult, Inimigo Rumor e Ficções, Azougue, Babel, Literatura - Revista do Escritor Brasileiro, Rascunho, Cadernos de Literatura Brasileira; Suplemento Literário - MG, Orobó, Linguagem Viva, Cigarra. A maioria prossegue. E vieram outras. Há Coyote, Etcetera, Ácaro, Cacto, entre outras. Mais ou menos na faixa de Cult, apareceram Entrelivros e Discutindo Literatura.

Se voltasse a atuar em instituições ou órgãos culturais, faria uma exposição permanente dessas revistas. Compensam a redução do espaço para literatura no que restou da grande imprensa, jornais e revistas. Corrigem um certo burocratismo da crítica universitária. Por isso, aumentou sua importância como meio de formação do gosto dos leitores e divulgação de autores. Claro que refletem, sempre, um sistema de relações, algo semelhante às paróquias e confrarias; e a adesão em maior ou menor grau, mais ou menos explícita, a uma poética, uma escala de valores literários. Mas isso é compensado pela diversidade, e pela conseqüente pluralidade. Por isso, espera-se que prossigam, que recebam mais apoio, mais subvenções e patrocínios, que sejam adquiridas pro redes de bibliotecas públicas e instituições de ensino. E que continuem a ser tema de debates, cada vez mais passionais.

Isso, quanto ao panorama atual. Houve épocas mais heróicas; por exemplo, quando colaborava em Versus, preparando uma seção de poesia. Era em plena década de 1970 - estávamos em plena trincheira, regime militar de um lado, militâncias mais sectárias de outro. Outra hora, falarei desse período.

Claudio Willer, poeta, tradutor e ensaísta, é autor de Extrañas Experiencias (poesia, 2004), entre outros títulos.

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Ademir Demarchi: Para falar com otimismo de literatura no Brasil e da idéia de que haja um sistema literário, onde se pudesse inserir uma revista literária, assim como escritores, livros etc é imprescindível que, em vez de nos fantasiarmos de escritores, nos fantasiemos antes de personagens livrescos, mais apropriadamente quixotescos, de forma a acreditar nesses moinhos de vento e em suas idealizações fantasiosas, que nos façam, acreditando, afirmar que "somos escritores", "existem revistas literárias", "os livros estão sendo editados e estão sendo distribuídos", "estamos sendo lidos", etc. Isso porque vivemos num país que se caracteriza mais por efemérides do que por políticas de mudança e é por isso que se realiza anualmente aqui um interminável "Dia Nacional da Alfabetização", que acabou de ocorrer na primeira semana deste mês de setembro de 2005, cuja aparente principal função de ensinar a ler e estimular a leitura é sempre ofuscada pela ironia maior de divulgar dados sobre alfabetização que legitimam sua infinita continuidade e gastos públicos que não levam a mudança alguma, daí a inevitável lembrança que se tem que fazer do ótimo e também irônico filme de Sérgio Bianchi, "Quanto vale ou é por quilo?", aplicável a mais esse setor da vida nacional.

Os dados divulgados portanto nesse último Dia Nacional de Alfabetização, que compõem o 5.º Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional nos dão o caminho inicial da iluminação do que seja nosso sistema literário. Segundo esses dados, 7% da população brasileira são de analfabetos e 68% são de analfabetos funcionais, ou seja, aqueles que sabem ler e escrever mas não conseguem interpretar o que estão lendo ou escrevendo, incapazes, portanto, de ler um livro.

Somados esses dois índices, analfabetos reais e analfabetos funcionais, temos o resultado cruel de que 75% da população brasileira não fazem parte do mundinho em que tentamos fincar os pés lidando com livros - ou seja, para esses 75%, cerca de 137 milhões de habitantes, o livro nada significa.

A experiência de ouvir o gaguejo de se ler sílaba por sílaba feito por um porteiro "alfabetizado" no prédio em que moro me mostrou exatamente o que é isso: um preâmbulo que não chega e nunca chegará ao livro. Além, evidentemente, da constatação de que é raro ver alguém lendo e que o que se vê são as pessoas lendo certamente o único livro que alcança essa população, a bíblia. E, nela, o trecho mais lido parece ser o do apocalipse, que serve para justificar a própria filiação à religião, como caminho à salvação e o encontro de um prazer sadomasoquista de se ficar imaginando a finitude ou que tudo vai acabar mesmo e que o fim já começou, como disse o porteiro, nas tsunamis e furacões pelo mundo e até aqui no nosso quintal, na última ressaca que derrubou muretas na Ponta da Praia em Santos...

A população plenamente alfabetizada, portanto, é de apenas 1/4 ou 25% do total de 183 milhões de habitantes segundo estimativa do IBGE em janeiro deste ano, exposta no site do Governo Federal.

O número de alfabetizados representa, assim, um universo de apenas 45 milhões de pessoas. Pareceria um número até razoável para nos alegrarmos e termos a fantasia de que pelo menos seria esse o mercado de consumidores de livros, se todos, claro, consumissem livros, o que não é verdade, e se não soubéssemos também que as edições de livros no Brasil, quando as há, são em regra de mil exemplares, passando disso apenas os escritores que já têm alguma visibilidade no mercado, depois de anos e anos e títulos publicados ou de janela em jornal, ou fazendo estripulias para chamar a atenção.

Um exemplo típico disso é Bernardo Carvalho, que escreve na Folha de S. Paulo, tem vários livros publicados, relativamente vende mais fora do Brasil que aqui e cujo livro Mongólia vendeu até o fim do ano passado (2004) no Brasil 6 mil exemplares, depois de indicações para grandes prêmios literários e com grande exposição de mídia, além, claro, de um certo apelo ao gosto do consumidor, que é ávido por culturas estranhas neste quase previsível e globalizado mundo urbano que vivemos. Se para Bernardo Carvalho se dá o luxo de estar em apenas uma editora, para a grande maioria ou quase totalidade de escritores o que há é a realidade de a cada novo livro buscar nova editora, isso no âmbito da ficção, que afinal vende mais, pois se formos falar de poesia a coisa é muito pior.

No campo das estrepulias tivemos o notório caso de Hilda Hilst, que se cansou de buscar uma editora decente para dar a devida atenção ao seu trabalho, um sucesso de crítica, e passou a publicar livros escrachados e tendenciosamente eróticos para chamar a atenção do público, porém só foi conseguir uma edição decente dos seus trabalhos depois que morreu, quando a editora Globo a incorporou, ou seja, quando não precisava mais.

Mais recentemente temos assistido a lances de marketing em blogues desbocados como o de Clara Averbuck, que gerou um livro que vendeu bem por seu caráter apelativo, ou a adoção de rótulos como aqueles incorporados por Nelson de Oliveira para alavancar um significativo grupo de escritores, a tão falada "Geração 90" e "Os transgressores".

Cabe aqui também uma nota ao trabalho de marketing admirável que faz Marcelino Freire, abrindo brechas no mercado através da criação de livros como Os Cem menores contos, que tripudiou um livrão oportunistamente comercial da Editora Objetiva, Os cem melhores contos do século, um livro de qualidades, certamente, mas produto típico de editora comercial, agora vendida a um grupo estrangeiro, denotando outra tendência do mercado.

Sintoma desse estado de coisas, quanto a essa nova fase da editora e desse grupo, pode se dizer que inauguram sua presença no Brasil com o aumento da apelação, como a edição do livro A entrega - memórias eróticas, da bailarina Tony Bentley, que fez com que ela, enfim, "chegasse ao topo" - como nos diz Carla Rodrigues ao entrevistá-la no site No Mínimo -  com "um relato pessoal sobre a opção preferencial pela prática de sexo anal", que Bentley diz ser "Um ato de submissão espiritual", denotando de novo que mais alguém parece ter vislumbrado o apocalipse...

Mas voltemos a tentar definir o que seja esse fantasioso "mercado" de 45 milhões de letrados - basta dizer que os autores mais vendidos como Paulo Coelho ou Fernando Morais mal conseguem vender uma tiragem de um título que chegue a 1% desse público, ou seja, 450 mil exemplares, proeza só conseguida por dicionário como o Aurélio, depois de mais de uma década de vendas e apoios de compras governamentais para distribuição a escolares. Ou seja, o público consumidor de livros no Brasil é muito pequeno e arrisco dizer que não chega nem a um milhão de pessoas, ou seja, 0,5% de toda a população.

Num diagnóstico feito pelo BNDES, publicado em A Economia da cadeia produtiva do livro, feito por Fábio Sá Earp e George Kornis (disponível no site do BNDES na forma de e-book, publicado neste ano de 2005), constata-se que o que temos hoje é "uma imensa diversidade da oferta de títulos e a dispersão dos leitores possivelmente interessados em cada um", caracterizando uma grande quantidade de editoras, um grande número de títulos, um grande número de escritores, versus um pequeno mercado de livrarias e, na ponta final, um pequeníssimo número de leitores.

Esse diagnóstico feito pelo BNDES aponta com ressalvas a existência de cerca de 1.500 livrarias no país, o que parece ser um número por demais inchado pois, segundo o próprio relatório, o levantamento não é confiável, uma vez que muitas lojas têm registro como livraria mas vendem de tudo, sendo os livros um acessório. Quanto a esse aspecto das livrarias ainda é interessante notar que dessas possíveis 1.500 livrarias, 2/3 delas, ou seja, mil, estão na região Sudeste, no famoso eixo Rio/São Paulo, incluindo Minas Gerais e 500 delas no restante do país. A pesquisa, talvez num ponto mais realista, aponta que 90% dos municípios brasileiros não têm livrarias e há até indicações de que o número está diminuindo.

A análise do BNDES paradoxalmente conclui que "O problema fundamental do editor não é colocar o seu produto no mercado, mas encontrar o leitor certo para cada um de seus títulos. O problema fundamental do consumidor é encontrar os livros que o interessam em meio à multiplicidade de títulos produzidos. Juntando a oferta fácil com a demanda difícil, temos de fazer com que os editores e os compradores de livros se encontrem mutuamente. Há um risco crônico de superprodução. É por isso que o problema do livro é, acima de tudo, de distribuição, que depende, sobretudo, de informação - que é ainda mais importante em uma sociedade (que se pretende) da informação".

Constata-se, portanto, que o mercado é neste país um bicho de sete cabeças, necessariamente vinculado à questão da informação ou formação, e que haveria que se construí-lo, o que é uma missão desde sempre ilusória que já tomou tempo de muitos intelectuais deste país em eterna formação - de um Monteiro Lobato aos modernistas ou, num caso ainda mais curioso, de Otto Maria Carpeaux que, nos anos 40, no Suplemento Letras & Artes do jornal A Manhã, assumiu a missão iluminista de tentar formar leitores publicando uma coluna que se chamava sugestivamente de "A arte explicada ao povo". Quem se meteria hoje em sã consciência a conceber algo como "A poesia explicada ao povo?"

Diante disso tudo, por que publicar uma revista?

Publicar uma revista parece tratar-se de algo mesmo irrelevante, sobretudo se considerarmos que uma revista como a Babel teve tiragem de 1.000 (1ª edição) 400 (2ª a 5ª edições) e 500 exemplares (6ª edição). Mas e daí? Mais radical era o poeta Sérgio Rubens Sossélla, que se aposentou como juiz e morou no interior do Paraná, em Paranavaí, onde publicou cerca de 300 livros, todos com tiragens que iam de 10 a 30 exemplares, que ele já achava demais, pois usava para sua poesia a prática judiciária que considera que basta um exemplar enviado a alguém ou colocado numa biblioteca para "tornar público".

Não importa, assim, a quantidade, mas a qualidade do que se publica ou faz. Uma revista como a Babel não tem qualquer vínculo com o mercado ou grupo editorial, sendo apenas o ato concreto da vontade de algumas pessoas que escrevem e têm nisso um veículo de experimentação, de expressão de leituras, de reflexão sobre suas próprias escritas na medida em que se confrontam com outras e dialogam com um número de leitores possível a uma publicação especializada.

Aquele impulso iluminista de Carpeaux, portanto, hoje é incabível a um escritor, sendo bem resolvido por publicações comerciais eficientes e objetivas como Entrelivros e Cult, entre outras, que buscam a informação e formação de um público leitor.

Revistas de escritores, como a Babel, são projéteis, geringonças experimentais que têm a função de ignorar a lógica para propor outras concepções de pensamento, trazer à luz o esquecido, enfatizar o desprezado, situar-se deliberadamente à margem para buscar a inovação ou o diferente em relação ao que se tem como regra corrente. Se a clareza dos tempos que vivemos nos diz que não é possível mais uma vanguarda, entretanto ela mesma, essa clareza, nos ensina que, não sendo possível o novo pelo novo, é possível mudar o foco em relação ao que existe, na medida mesma em que, como uma câmera, se dirija o olhar para outro ponto oculto como uma ferida que anuncia a morte paradoxal desse sistema que se combate o tempo todo, porém infindável na mesma medida em que se renova em sua onipotência econômica.

Se a ação pedagógica parece uma impensável hoje, no entanto há uma luta constante para se existir, vislumbrar um esboço de pensamento e sobreviver num tal estado de coisas cuja maior função é dizimar a cultura, submeter à miséria. Num ensaio recente Nelson de Oliveira dizia o seguinte sobre essa luta constante que fazem os escritoes:  "A boa propaganda duela com armas brancas, sempre. É ela que leva os escritores da "geração 90" a ler seus textos em praças e escolas, organizar saraus, criar revistas e blogs, falar de literatura 24h por dia e muitas vezes pagar do bolso a edição de um livro. O livro pronto, recomeça a batalha: enviá-lo a críticos, jornalistas e outros escritores, insistir para que os livreiros o aceitem nas livrarias. Por que essa trabalheira? Porque acreditam que estão escrevendo a melhor literatura do planeta. E muitos estão. Todo esse movimento é sinal de vida literária, de sangue correndo no corpo. Tudo isso bate de frente com a literatura de gabinete, voltada apenas para o cânone e distante do corre-corre cotidiano, postura aristocrática".

Por isso creio que um país tão complicado econômica e socialmente como este, com uma sociedade empobrecida, vazada por corrupção e com hordas de famintos e analfabetos, tem exigido um encontro dele mesmo com a realidade e por isso tem gerado uma forte resposta nos últimos anos em várias áreas, como em filmes como Cidade de Deus, de Fernando Meireles, 16060, dos irmãos Mainardi ou Cronicamente Inviável e Quanto vale ou é por quilo, de Sérgio Bianchi, mas sobretudo na ficção, com livros que partem de um realismo naturalista e de denúncia social, ou senão explicitamente isso, de insatisfação com a sociedade, expresso nas ficções de Marcelino Freire, Marçal Aquino, Fernando Bonassi, Paulo Lins, Luiz Ruffato, Marcelo Mirisola, Joca Reiners Terron e tantos outros, que também chega em menos casos à poesia, mas com  intensidade como em Zona Branca, de Ademir Assunção, ou na poética crítica e irônica de Glauco Mattoso.

Publicar revista, assim, é criar focos de resistência e de reflexão sobre esse estado de coisas que, no que se refere à literatura, passa longe dos jornalões e revistas comerciais.

Como escritores, mesmo que fantasiosamente vivendo neste farsante mercado somente podemos dizer com Schopenhauer, com o devido crédito ao Nélson de Oliveira pela citação, que "somos movidos pela vontade, pelo desejo, pelo querer, razão pela qual jamais encontraremos a paz e o sossego definitivos".

Ademir Demarchi, escritor, autor do livro Passagens - Antologia de Poetas Contemporâneos do Paraná (Imprensa Oficial, 2002) é editor da revista de poesia Babel .

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Marcelo Chagas:

" XXVIII - Falemos agora das artes. Por que os espíritos conceberam e transmitiram tantos conhecimentos que passam por excelentes, a não ser por sede de glória? Foi à custa de vigílias e de suores que uns homens, na verdade extremamente loucos, acreditaram comprar essa fama, que , na verdade, é a mais vã de todas as coisas. Assim é que deveis à Loucura todas as preciosas comodidades da existência, pelas quais, o que é infinitamente agradável, tirais partido da loucura alheia." Elogio da Loucura de Erasmo de Rotterdam (1466 -1536)1

"27ª Tese Pregam futilidades humanas quantos alegam que no momento em que a moeda soa ao cair na caixa a alma se vai do purgatório. 39ª Tese É extremamente difícil, mesmo para os mais doutos teólogos, exaltar diante do povo ao mesmo tempo a grande riqueza da indulgência e, ao contrário, o verdadeiro arrependimento e pesar. 82ª Tese Haja vista exemplo como este: Por que o papa não livra duma só vez todas as almas do purgatório, movido pela santíssima caridade e considerando a mais premente necessidade das mesmas, havendo santa razão para tanto, quando, em troca de vil dinheiro para a construção da basílica de São Pedro, livra inúmeras delas, logo por motivo bastante infundado? " As 95 Teses afixadas por Martinho Lutero na Abadia de Westminster a 31 de outubro de 1517, fundamentalmente "Contra o Comércio das Indulgências"

Freqüentemente acontecem processos de relativização do valor cultural das principais matrizes vigentes, em dado local e período histórico, momentos que carregam a justificativa de outorgar validade para discursos estéticos e políticos que se encontravam à margem das instituições culturais e do debate social mais amplo. Momentos como o chamado Renascimento, Iluminismo, Romantismo, etc. Alguns teóricos querem afirmar que estamos vivendo um momento com essas características, de grande diversidade de referências, muitas delas contraditórias e coexistindo num regime de hibridismo e realinhamento conceitual. Principalmente depois da queda dos maniqueísmos entre os blocos sobreviventes da Guerra Fria, e o progressivo "entregar de armas" para a mundialização de mercados, a prima-dona desse processo de uniformização cultural pelo mercado tem sido a cultura globalizada.

 

De vinte anos para cá, vem junto na MacOferta: batatinha-frita, Tom Wolfe, hambúrger, Faulkner, sundae e Harold Bloom. Toda uma onda reacionária, transvestida de nova subjetividade contemporânea, que saboreia todos os produtos com seu peculiar excesso de gordura, açúcar e aromatizantes. Também é freqüente nas análises históricas que para as metrópoles imperiais, quando alcançam sua supremacia militar, política e cultural, só restam as bênçãos do excesso de peso e da promiscuidade. Quem não se lembra de Nero, ou Calígula, Bill Clinton, ou mesmo do cidadão comum, acima da média, de peso, americano. É também nesse ambiente que prosperam a sátira e a comédia.

Nesse mesmo pacote, de brinde, uma enxurrada de instituições. Para cada novo produto, uma instituição que a celebre. Da associação dos pipoqueiros da Carolina do Sul, aos produtores de pornografia, passando pela world music, latin poetry e todo tipo de cânone que espelhe uma "nova subjetividade". E o produto mais cobiçado dessas instituições são as coletâneas de top 10 a top 100. Onde se pode colocar, lado a lado, Homero, Einstein, Mozart, Picasso, Cicciolina, Madonna e o digníssimo "Sr. Qualquer Um" de qualquer área industrial. Nesse contexto de diversidade institucional surgem como figuras fortes da cultura os editores, curadores, e as bancas de júri: os novos vendedores de indulgências, os salvadores dessas almas que pretendem, à qualquer custo sair do limbo do anonimato.

A moeda corrente mais aceita hoje é o elogio, a menção, a entrevista, a titulação, a premiação. Afinal, como sobressair à descarga diária de novos produtos culturais, nem todos contemplados com a atenção da máquina publicitária das mídias, nem todos com um escândalo para promover seus nomes. São ex-jogadores de futebol, ex-drogados, ex-prostitutas, todos querendo contar as suas histórias e dividir o peso de suas consciências. Talvez, movidos pela curiosidade ou culpa, essas lamúrias por escrito chamam a atenção e se destacam como alguma coisa verdadeira nesse mar de ficção. Engrossam a fila as atrizes com seus casamentos perdidos, os escritores medíocres que viram a morte de perto em algum acidente, e as minorias tradicionais. Cada um com seu cânone próprio no bolso e a justificativa das suas "idiossincrasias" nas teses acadêmicas que professam a complexidade do mundo contemporâneo.

Andy Warhol: Lênin, Howdy Doody, Kafka, Pat Hearn

Quem já não viu um professor doutor com sua malinha, à la Gato Félix, de onde tira a cura para toda desconfiança quanto aos cânones. "É o herói!". A figura proeminente do "Crítico criador de mitos", lição bem aprendida com Andy Warhol. Não há superficialidade que resista à alguns goles de bom champanhe e caviar - servidos pelas mesmas mãos negras de sempre, com luvas. Escrevem seus catálogos, cada vez mais pesados - seu peso medido em quilos. Derrisão é a pedra filosofal de uma retórica burguesa que faz questão de afirmar que o tempo da luta de classes já passou. Hoje, em tempos de complexidade, quem pode dar uma opinião definitiva sobre qualquer coisa? Aranhas a tecer sua renda de citações, armadilha conceitual, arquitetura de saliva, na expectativa de que a mariposa nela se enlace e debata, até extinção de suas forças.

Em tempos pós-modernos a disputa é pelos espólios, heranças, influências tardias ou inspiração, que seja. Faz lembrar Hamlet escavando seu encontro com o bobo-da-corte:

"Deixa-me vê-lo (segura o crânio) Ai ! Pobre Yorick ! Eu o conheci, Horácio: era um homem engraçadíssimo e de fantasia portentosa. Mil vezes me carregou nas costas e, agora, sinto horror ao recordá-lo! Meu estômago até se revolta ! Aqui pendiam aqueles lábios que eu beijei não sei quantas vezes. Que fizeram de teus sarcasmos, de tuas cabriolas, de tuas canções, de teus rasgos de bom humor, que faziam toda a mesa prorromper em gargalhada ? Nada, nem uma só graça sequer para ridicularizar tua própria careta ? (...)"2

A lembrança metafísica que o bobo-da-corte provoca garante a última dignidade possível hoje: a dos defuntos. Nesse caso, vale a lógica dos abutres, escarafuchadores e arqueólogos. Um restinho de carne no osso, uma moeda rara, ou ponta de lança, um prêmio inestimável para quem não tem nada de próprio para dizer.

Mesmo as vozes discordantes do coro pós-moderno, a louvar, ininterrupto, a abundância de oportunidades dos novos tempos, caminham numa linha tênue entre ironia e enquadramento. Escarnecem do jogo, dentro dele, prestando atenção a cada movimento. Novos enfant-terribles, com seus blusões de couro, aro tartaruga, cachimbos, ou qualquer muleta de personalidade que valha, procuram imitar trejeitos e, quem sabe, inventar novos, nessa comédia de mau gosto, que se tornou a cultura mundializada. Que de mundializada só tem a mediocridade, pois a metrópole prefere seus próprios idiotas, english-speakers, para lhes entreter. Passa a valer na colônia o canibalismo sem virtude e a lógica fura-fila, na enorme procissão de desempregados com títulos, caminhando sem imagem para louvar, sem igreja para ir.

"A própria sociabilidade é a participação na injustiça, na medida em que finge ser este mundo morto no qual ainda podemos conversar uns com os outros, e a palavra solta, sociável, contribui para perpetuar o silêncio, na medida em que as concessões feitas ao interlocutor o humilham de novo na pessoa que fala." Minima moralia, Theodor Adorno.3

Por que editar uma revista literária hoje? Para tentar não reproduzir a farsa, ou sintoma, que tomam conta dos espaços de cultura. Sem cair na ingenuidade romântica, ou na presunção de salvador da pátria, uma alternativa seria reduzir a escala das expectativas, trazer o diálogo para uma realidade não tão mediada pelas promessas de sucesso de mercado, pela mais valia da erudição ilustrada, pelo corporativismo dos acadêmicos. Ao invés de "viver de arte", com toda a conotação parasitária possível, "viver com arte", eticamente. O lugar dessa satisfação é o espírito. Não o ego. O espírito, lugar de encontro entre os sujeitos. O poeta instala no outro um espaço seu, a partir da sua imaginação. Entre.

Esse lugar, o espírito, que não encontra endereço na anatomia, dificulta a produção de estatísticas de satisfação do consumidor. Não mora na barriga, no rosto ou nos genitais. Nem no arranha-céu, muito menos nos altares santificados. Irritantemente indefinível. Um lugar próximo ao endereço da Loucura, como afirma Erasmo. Sem cor, sem raça, sem gênero, sem pátria, como definí-lo ? Segundo Hegel, "o verdadeiro é unicamente essa diversidade que se reinstaura ou a reflexão de si mesmo no ser-outro. Não é unidade original enquanto tal, ou imediata enquanto tal. É o devir de si mesmo, o círculo que pressupõe seu fim como seu alvo, tem esse fim como princípio e é efetivo somente por meio da sua realização e do seu fim." 4

A idéia de editar uma revista é a de compartilhar essa diversidade irredutível, desenvolvendo um diálogo que possa trazer sínteses críticas, mesmo que provisórias, mas que possam, de forma autônoma aos valores excludentes da "sociedade de abundância", nortear um paradigma ético e político mais solidário e tolerante. As vanguardas artísticas que, através de uma total reversão cultural e lingüística, se afastaram do cidadão comum, com o objetivo de reinstaurá-lo numa outra sociedade, transformada pela empreitada estética, acabaram abandonando, gradativamente essa missão, e redundando em práticas formalistas e auto-referenciais fetichizadas. O que veio para ampliar o espectro do imaginário humano desaguou numa enorme redução de sensibilidade, a serviço da uniformização dos hábitos culturais em rotinas de consumo.

Todo o cuidado possível com um ceticismo exagerado, niilismo mais próximo da capitulação sem luta. Prefiro, teimosamente, insistir que a arte é um fazer coletivo, sua legitimidade passa por uma afirmação do individual, mas deve alcançar o coletivo com uma força libertadora. Exceto as obras feitas por encomenda para colecionadores, ou execução em salões privados, a arte e o estudo que utiliza financiamento público deve tomar consciência que todo o recurso empregado nela tem uma fonte e um endereço comum: a sociedade. Da mesma forma, a crítica, que toma emprestada essa legitimidade, deve evitar a privatização dessa pretensa base moral, em direção a uma reflexão de fato, que leve em conta, não apenas o lugar comum das tradições eruditas estabelecidas, mas a real necessidade de criar - ou recriar - práticas políticas, intrínsecas nas obras de arte e nas outras instâncias culturais.

[1] Elogio da loucura - Erasmo de Rotterdam; trad. Maria Ermantina G.G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1990
[2] Hamlet, príncipe da Dinamarca - William Shakespeare; trad. F. Carlos de Almeida e Oscar Mendes. São Paulo: Nova Cultural, 1993
[3] Minima Moralia - Theodor W. Adorno; trad. Luiz Eduardo Bicca. São Paulo: Ática, 1993
[4] A Fenomenologia do Espírito - Georg W. F. Hegel; trad. Henrique Cláudio de Lima Vaz. São Paulo: Abril, 1974

Marcelo Chagas, editor da revista eletrônica Critério (www.revista.criterio.nom.br), crítico de arte, semioticista, designer gráfico, produtor cultural, colaborador da revista de poesia, tradução e crítica Babel. Trabalha e reside em Santos (SP).

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Edson Cruz: Há quem acredite serem as revistas literárias tão importantes quanto as obras-primas de uma determinada literatura. Se isso for verdade, é mais do que oportuno pensar e questionar o papel das mesmas no contexto de nossa literatura através da história, e mais ainda, a sua importância na literatura contemporânea.

As revistas, pelo que podemos observar, sempre foram um pólo aglutinador de criadores e pensadores das questões que permeavam a produção e a recepção das obras literárias. Quase todo grande movimento literário digno de nota gerou, e nas primeiras horas sustentou-se numa revista que lhe servia de porta-voz e por meio da qual se articulavam manifestos, poemas, contos, ensaios críticos no calor da hora, fragmentos de romances, etc.

Não teremos tempo, nesta pequena introdução a questão, de analisar os vários períodos históricos de nossa literatura tupiniquim e suas respectivas publicações de luta e afirmação. Basta lembrarmos que o modernismo brasileiro seria impensável sem as publicações das revistas Klaxon (1922-1923); Revista Verde (1928); Revista de Antropofagia (1928-1929); Festa (1927-1929 e 1934-1935); e, mais recentemente, fundamentando o plano piloto do movimento de poesia concreta, as revistas Noigandres (1952-1958) e a Invenção (1962-1964).

Convém ressaltar que essas revistas tinham um engajamento quase que "romântico" no sentido de que eram feitas na "raça" e "às próprias custas" sem o benefício das leis de incentivo e de verbas governamentais que hoje custeam grande parte das revistas literárias que conseguem se manter por mais de um ano.

O que gostaríamos de avaliar, nesta reflexão, é como se dá o funcionamento das revistas literárias contemporâneas tendo em vista a imbricação triádica complexa que são as relações entre o autor, a obra e o público e a partir daí apreendermos a validade de se editar uma revista literária hoje.

Por uma questão de foco, centrei-me em duas revistas contemporâneas que são aparentemente distantes uma da outra, tanto em seu projeto editorial e gráfico, quanto em seu posicionamento geopolítico e estético. Digo aparentemente, pois não estou certo de que seus projetos sejam tão díspares assim, mas através delas me foi possível refletir algumas questões que me surgem em minha própria experiência como editor de site e de revista literária on-line.

Falo da revista carioca Inimigo Rumor e da cearense Arraia Pajéurbe.

As revistas literárias, a meu ver, são um campo privilegiado para a reflexão do fazer literário, no sentido de que - a margem do mercado - podem (e normalmente o fazem) abrir espaço para novos poetas, e para os já estabelecidos, mostrarem seus trabalhos e avaliarem a sua receptividade, pois como disse Valéry, "o homem dificilmente está sozinho", e de alguma forma estará sempre "mais ou menos consciente do efeito que será produzido" pela sua obra no público leitor ou "consumidor", para adotarmos a designação emprestada da Economia por Valéry.

Dizem por aí que "há um público cada vez menor de leitores de poesia". Se há dúvidas de que essa assertiva seja correta, o que nos parece mais evidente é que as editoras bem estabelecidas publicam cada vez menos poesia. O que poderia nos levar a concluir (creio que erroneamente) que há um desinteresse pela produção poética por parte do grande público. Erroneamente, penso eu, pois os autores já estabelecidos pela 'tradição' ou pela academia, ou pela crítica literária, continuam a serem reeditados, lidos, comentados, revisados, "afortunados", diria eu.

Ou seja, há sim um público leitor de poesia. O que não há é um público de leitores da poesia que se está fazendo hoje com toda a diversidade de dicções e motivações apresentadas.

Passado o momento heróico do estabelecimento do plano piloto da poesia concreta, onde buscava-se "novas condições para novas estruturações da linguagem" chegando-se ao que foi denominado pelos seus engendradores como uma conquista da relação dos "elementos verbivocovisuais", no dizer de Décio Pignatari, e passado também seu momento de diluição na prática dos novos criadores influenciados por este programa importantíssimo, o que se observa nas revistas contemporâneas mencionadas (entre tantas outras) é a retomada e a eleição do verso como forma predominante da construção poética. De maneira geral, o verso livre -devemos ressaltar -, mas ainda assim o verso.

Ou seja, tal adoção de procedimentos demonstra que o projeto concretista, embora seja notória sua presença e influência na propaganda, na paginação das revistas e de jornais, nas diagramações dos livros, nos 'slogans' da TV, veio mais para sanear e "higienizar" as práticas literárias que eram feitas até então, colocando outras idéias e autores em discussão, do que para estabelecer-se como uma nova forma a ser adotada a partir de então. Algo que não foi mantido nem pelos seus próprios criadores.

Porém, temos que concordar com Augusto de Campos em sua introdução a 1ª edição da Teoria da poesia concreta, quando diz:

"O movimento de poesia concreta alterou profundamente o contexto da poesia brasileira. Pôs idéias e autores em circulação. Procedeu a revisões do nosso passado literário. Colocou problemas e propôs opções.

No plano nacional, retomou o diálogo com 22, interrompido por uma contra-reforma convencionalizante e floral. Surgiu com um projeto geral de nova informação estética, inscrito em cheio no horizonte de nossa civilização técnica, situado em nosso tempo, humana e vivencialmente presente. Ofereceu, pela primeira vez, uma totalização crítica da experiência poética estante, armando-se de uma visada e de um propósito coletivos. Enfrentou a questão participante, mostrando que alistamento não significa alienação dos problemas da criação, que conteúdo ideológico revolucionário só redunda em poesia válida quando é veiculado sob forma também revolucionária. Pensou o nacional não em termos exóticos, mas em dimensão crítica."

Em outras palavras, o movimento concretista nos educou a todos. Mesmo os que se posicionaram diferentemente ou reativamente, adotando outras práticas ou "práxis", tiveram que, de certa forma, perder a ingenuidade e colocar-se com mais consciência, historicidade e criticidade em seu fazer poético.

Antes de mostrarmos o "plano piloto" das duas publicações em questão, vale citar as reflexões feitas no 'calor do momento' em que vivemos, por Nelson de Oliveira em seu livro de 2003, Verdades provisórias. Ao analisar as revistas literárias atuais, em relação às de nosso passado próximo, ele se ressente de um excesso de crítica e ensaios, em detrimento da "criação" propriamente dita.

"A julgar pelo que se vê hoje em dia, a função de uma publicação literária qualquer é basicamente a de criticar e avaliar a produção poética e ficcional. Criticar e avaliar - mais do que apresentar amostras desta produção: contos, poemas, trechos de romance etc."

Em outro momento ele analisa:

"Dá-se no Brasil do pós-Segunda Guerra o momento áureo das revistas literárias, que durou mais ou menos trinta anos e ocorreu lado a lado com o auge do modernismo tardio tanto na prosa quanto na poesia. Coincidência? Momentos de pico da criatividade literária viriam necessariamente acompanhados de boas publicações críticas, destinadas ao amplo público? Ou uma coisa não tem nada a ver com a outra? Tendo a acatar esta segunda opção: a homologia não é obrigatória. Grandes críticos literários - e grandes publicações literárias - podem existir mesmo quando não há nenhum grande escritor em atividade, e vice-versa. Como disse Anelito de Oliveira, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, resumindo a questão: "Ausência de literatura é notícia tanto quanto presença de literatura". § A crítica literária está vivendo, no Brasil, um momento relativamente esquizofrênico. Por um lado, muitos escritores estreantes - entre eles o pernambucano Marcelino Freire, o gaúcho Altair Martins, o carioca Carlito Azevedo e o mineiro Fabrício Marques - têm sido recebidos com salva de palmas por resenhistas e leitores de todos os níveis, dentro e fora das redações, dentro e fora das universidades. Por outro lado, até agora não surgiu ninguém disposto a fazer o balanço do que foi, por exemplo, a literatura brasileira na última década, muito menos uma voz que reunisse e resumisse todas essas salvas de palmas numa fórmula matemática clara, cuja decodificação provasse por A mais B que a literatura brasileira recente vai de vento em popa. O que se ouve, da parte da crítica, é o veredito mais ou menos unânime de que a literatura brasileira nunca esteve tão ruim das pernas. Noutras palavras, continua sendo consensual a afirmação de que depois da geração de prosadores que estourou na década de 70 e dos poetas da geração do mimeógrafo, nada de muito instigante tem acontecido nas letras produzidas neste torrão do Ocidente. Se torcermos um pouco o rumo da discussão, daremos de cara com a seguinte pergunta: E quanto às revistas literárias?"

Nelson segue sua análise da importância das revistas literárias para a literatura, concluindo melancolicamente:

"De tudo isso, o que parece ficar é a esquizofrenia mencionada no início deste artigo. Vencida a péssima fase econômica dos anos 80, a quantidade de publicações especializadas cresce a cada dia. É prematuro ser categórico quanto a isso, mas tudo indica que o tempo da hegemonia da criação, nas grandes publicações literárias, parece que já passou. Até na Internet, onde proliferam as páginas de jovens prosadores e poetas ávidos por mostrar seu trabalho, o número de páginas destinadas à resenha e ao ensaio não é nem um pouco desprezível. Agora é a hora da crítica nas publicações de grande circulação, que estão levando ao pequeno Brasil que as consome ensaios de veteranos como João Alexandre Barbosa e Ivan Teixeira, e da nova geração de críticos, composta por nomes como José Castello e Miguel Sanches Neto."

Se o que diz Nelson de Oliveira for verdade, encontraremos nas revistas mais textos analíticos e críticos do que a produção dos autores contemporâneos, desconhecidos ou não.

Talvez sua análise seja verdadeira em relação às revistas "literárias" de grande circulação, aquelas que foram encampadas por editoras e vendem em bancas de jornais com distribuição nacional. Se o modelo a ser questionado, então, for o da "Cult" ou da "Bravo" seu raciocínio é totalmente verdadeiro, pois estas revistas dedicam ínfimas páginas à criação.

Seu raciocínio, porém, não é verdadeiro se nos debruçarmos sobre as revistas literárias de circulação e tiragem restrita: as chamadas "nanicas". Mesmo no caso daquelas que possuem uma boa distribuição garantida (ou mesmo a edição, como se dá com a Inimigo Rumor) por editoras estabelecidas, não é isso que observamos em suas páginas.

No caso das duas revistas que escolhemos para cotejar, a porcentagem de ensaios e de crítica é muito inferior a porcentagem de criação, seja ela poesia, prosa ficcional, "poema em prosa" (que por sinal teve uma edição especialmente dedicada a esta forma criativa, na revista Inimigo Rumor de nº 14), ou mesmo a fotografia que permeia e dialoga o tempo todo nas edições da revista Arraia Pajéurbe.

No começo de meus questionamentos ressaltei a possível disparidade entre estas duas publicações: a carioca Inimigo Rumor e a cearense Arraia Pajéurbe. Ao nos depararmos com as duas revistas essa possível disparidade salta aos olhos devido, inicialmente, ao projeto gráfico tão diferenciado de ambas.

A Inimigo Rumor, que nasceu em 1997, e hoje está em seu número 16, tem seu projeto gráfico mais associado (até onde tive acesso aos números mais antigos) ao formato livro. Desde o começo, seu projeto já estava ligado a editora 7Letras. A partir do momento que foi encampada, também, pela editora Cosac & Naify, o seu 'anseio em se tornar um livro' (vamos colocar desta forma) tornou-se visualmente mais explícito. Seu formato brochura ganhou uma capa dura, a qualidade do papel melhorou e ampliou sua distribuição, chegando hoje a ter uma edição em Portugal que não coincide integralmente com a edição brasileira.

Poderíamos deduzir desta escolha do formato livro, embora se intitulando de revista, uma busca de receptividade mais específica nas camadas leitoras que atribuem um maior "valor" a este formato, em detrimento do formato revista (aquele que é passível de se encontrar em bancas de jornais) que traria consigo, por adequação semântica e estética, um "valor" menos nobre, atribuído também ao conteúdo que o formato abraça.

Em sua edição de nº 16, comemorativa de oito anos de existência, ressalta-se em seu editorial o fato de ter-se mantido fiel, neste tempo todo, às propostas iniciais de seu projeto, a saber:

1) "Abrir espaço para os poetas estreantes" (ou seja, estreantes recém publicados em primeiro livro, ou nunca publicados). A revista durante seus anos de existência publicou mais de cinqüenta poetas estreantes.

2) "Divulgar material inédito de poetas e ensaístas brasileiros já estabelecidos" (neste quesito a revista confessa ter assumido "sem qualquer estardalhaço teórico ou qualquer sentimento de culpa, a herança modernista recente, incorporando os poetas concretos, os marginais dos anos 70 (Francisco Alvim, Zuca Sardan, Ana Cristina César, Eudoro Augusto e Cacaso, em especial), além de autores independentes como Ferreira Gullar e Sebastião Uchoa Leite".)

3) "Disponibilizar poemas e ensaios estrangeiros que aumentem nosso repertório de poesia e crítica em português".

A proposta consistiria em provocar "turbulências" na "pacificada produção poética brasileira" com o contato/atrito com experiências poéticas estrangeiras.

Neste aspecto, em nenhum momento a revista explicita quais, e de que tipo, seriam estas experiências poéticas estrangeiras. E deixa claro que, num tempo em que, segundo ela, estaríamos distantes "da era das vanguardas e seu dogmatismo doutrinário", pretende com o amplo espectro de vozes que abriga, manter o "poder de impacto" que seria característico das revistas literárias.

Me parece, nesta questão, que o grande "poder de impacto" das revistas literárias do passado era, mais do que possibilitar um amplo espectro de vozes, conseguir alinhar em suas fileiras vozes afinadas a um projeto estético claro e definido. Neste sentido, as revistas atuais - e isso vale para as duas cotejadas neste trabalho - seriam somente uma antologia de vozes sem dicção e projeto estético definido.

Por outro lado, a Inimigo Rumor, de maneira geral, cumpre bem o que se propôs. É inegável a amplitude e a qualidade dos textos que abrigou (e abriga) em suas edições. De Glauco Mattoso a Jacques Roubaud, passando pelos concretistas, pelos já citados herdeiros modernistas (o que precisaria ser mais aprofundado e esclarecido, mas que não conseguirei fazer aqui), até aos poetas contemporâneos franceses, argentinos e espanhóis. Em duas edições, pelo menos, a revista disponibilizou, em formato menor e anexo, livros na íntegra de autores não editados ainda por aqui: Tamara Kamenszain, poeta argentina, e Leopoldo María Panero, poeta espanhol.

Suas edições, sem dúvida, contribuem para aumentar nosso repertório poético contemporâneo, o que, talvez, seja algo por demais importante de ser feito neste momento chamado por muitos de pós-modernista e pós-utópico.

Já a revista cearense Arraia Pajéurbe, com apenas três números editados, e ainda desconhecida do público consumidor de poesia e de projetos literários veiculados pelas revistas, explicita a intenção de seu projeto editorial (seu plano piloto) da seguinte forma:

"Os artistas brasileiros, os escritores brasileiros, seus poetas de todos os âmbitos e artes estamos mesmo aparentemente por baixo. Fomos postos para fora do proscênio, da assembléia dita democrática. Mas queremos é mesmo estar fora do círculo pois saltamos, com esta revista, dessa geometria. Estamos fora de todos os lados, da esquerda, da direita, do centro e de suas mais que maquiavélicas misturas. Estamos resolutamente de fora. ... Precisamos, portanto, emanar o ímpeto do sonho, fazê-lo matéria e matérias do espírito. Reportagens poéticas, sutis curvaturas de sentido, a foto de ângulo impossível: rediagramar as páginas e as coisas. Transmitir o que está acontecendo e fazer aquilo que não ia acontecer, acontecer no delírio prático da arte. Criticar a ausência e o afastamento da mídia, geral, imposto, tiranizante de toda a literatura, arte e cultura brasileiras. Abrir uma nova fronteira a partir de Fortaleza, Ceará, Nordeste, Brasil, América Latina. De forma nenhuma aderir aos já totalmente desmoralizados padrões e conteúdos da arte, da literatura que se julga dominante. ..."

O projeto foi levado a sério, diria que, quase até as últimas conseqüências. Embora seja uma revista notoriamente de literatura, abriu-se para outras artes, principalmente a fotografia e a elaboração gráfica.

A partir de um formato cheio de arestas, triangular, a simular uma vela de Mucuripe, torna-se efetivamente uma revista-objeto, com toda materialidade explicitada, da qual não sabemos direito nem como abri-la, muito menos por onde começar a lê-la. 

A diagramação inusitada de suas páginas, aliada a profusão de cores e os ângulos improváveis de suas fotos, tornam a leitura dos textos um exercício de superação, como se o tempo todo ela nos dissesse: "se você acha a leitura de poesia difícil, vamos ver como você se vira agora".

Em alguns momentos, a meu ver, aquela "estrutura" buscada no plano piloto da poesia concreta se revela, como a apreensão de um ideograma. No processo de composição das páginas, as várias coisas, imagens, textos, reunidos, não produzem uma terceira ou quarta coisa, mas sugerem uma relação fundamental entre elas: o caos magnífico. Aquele tipo de caos, citado por Niestzche, onde podemos perceber uma 'estrela cintilante'.

É um projeto de exuberância neobarroca (para usar uma palavra do momento), onde as "noções tradicionais de princípio-meio-fim, silogismo" tendem a desaparecer e são superadas por uma outra organização, como queria a poesia concreta, "poético-gestaltiana", visual e táctil. Não estou querendo dizer com isso que a revista 'concretize', ou se paute, pelos anseios da vanguarda concretista, e sim que em muitos momentos a resultante oferecida pela revista soa-me como o mais próximo da vanguarda entre as revistas literárias disponíveis.

Mas, no que se refere aos textos poéticos apresentados pela revista, os versos são mantidos (versos brancos, mas ainda versos), os textos não são explodidos em suas formas, diria, mais convencionais. A inovação na revista se dá, a meu ver, mais no campo gráfico, espacial e visual, do que propriamente literário. Mas, isso não é pouco, pois uma revista que se produz como uma obra (com a força criativa que ela ostenta) gerada fora dos grandes centros de produção, tanto econômico quanto estético, deve ser celebrada.

Há poesia e há prosa em suas páginas, de autores que não trafegam (em sua grande maioria) no circuito editorial do 'sul-maravilha', e brasileiros em ampla maioria.

Para concluir acrescento que, pelos exemplos tomados neste questionamento, devemos assumir que o papel do leitor enquanto consumidor, embora ativo e produtor de sentidos, é sempre mediado pela possibilidade de acesso a obra, e quando o acesso se dá, a boa recepção -ou não- da mesma é sempre colorido, e matizado, pelo repertório acumulado pelo leitor/consumidor.

E se já não estamos mais em época de vanguardas, e seus doutrinamentos, torna-se mais importante ainda a proliferação deste campo privilegiado para reflexões e criações literárias e estéticas que são as revistas.

Note-se que nos exemplos tomados para análise não mencionei as revistas literárias virtuais. Para mim, no momento, a Internet é o local privilegiado da criação em todos os níveis. É de lá que surgirá (se é que ainda não surgiu) aquela estrutura buscada no plano piloto da poesia concreta. E muitas outras sequer imaginadas em qualquer plano piloto ou projeto.

Já podemos vislumbrar o que virá por aí. É só dar uma olhada na revista Mnemozine, na Germina, na Zunái, na Errática, e no próprio site Cronópios (embora esteja mais para um jornal do que para revista, pelas suas edições diárias) que edito juntamente com este artista genial que é o Pipol.

Bibliografia consultada e citada:

___Campos, A., Campos H., Pignatari, D. "Plano piloto para poesia concreta". In: Teoria da     poesia concreta. São Paulo: duas Cidades, 1975.
___
Oliveira, Nelson. Verdades provisórias. São Paulo: Iluminuras, 2003.
___
Valéry, Paul. "Primeira aula do curso de poética". In: Valéry, P. Variedades. Org. João    Alexandre Barbosa. São Paulo: Iluminuras.
___
Foucault, Michel. O que é um autor? Lisboa: Veja, 1969.
___
Lima, Luiz Costa. Limites da voz: Montaigne, Shlegel. R. de Janeiro: Rocco, 1993.
___
Revistas literárias: "Inimigo rumor"; "Arraia Pajéurbe"; "Azougue"; "Coyote": vários            números.

Edson Cruz é músico, poeta e co-editor do site Cronópios (http://www.cronopios.com.br) e da revista Mnemozine (http://www.cronopios.com.br/mnemozine/). E-mail: sonartes@cronopios.com.br

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Linaldo Guedes: Nos tempos de hoje, parece loucura apostar na produção de uma revista literária. Sim, porque editar uma revista literária é viver no limite. No limite do equilíbrio entre as igrejinhas literárias. No limite do stress de quem banca a revista e não aceita a inclusão de textos mais densos nela, sugerindo a superficialidade dos textos jornalísticos. No limite do sonho, de fazer com que a literatura seja realmente digerida pelos leitores. No limite da ausência de cúmplices, a dividir com o editor as agruras e as incompreensões do material editado. No limite do silêncio, ao não encontrar eco nos leitores para o material editado. No limite da frustração, por faltar mais recursos técnicos e humanos a ajudar na construção rotineira da revista. Editar uma revista literária hoje é estar sempre no limite. Algo assim como os atletas dos esportes radicais: sempre com a adrenalina à mil. Sempre insatisfeito, querendo mais e melhor. Sempre buscando novos recordes, que no caso da revista é a ampliação dos leitores e mais qualidade nas colaborações. Por isso que é preciso estar sempre editando uma revista literária. Porque na Literatura estamos sempre no limite, entre a procura e a vaidade. Quando achamos uma, perdemos a outra, e vice-versa. E é este limite que faz a revista literária imprescindível, nestes tempos de revistas Caras e Bundas e Vejas e outras coisas sem limite de banalidades.

Linaldo Guedes é poeta e editor da revista Correio das Artes, de João Pessoa.

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Luiz Edmundo Alves: Por vaidade. Por utopia. Por divertimento. Pela necessidade de me comunicar e fazer amigos em outros lugares. Por sina e destino. Todos esses motivos me empurram como editor de Tanto.
Nestes anos muitas vezes me perguntaram como é fazer uma
revista literária, se ganho dinheiro, se tenho auxiliares, se eu mesmo faço o trabalho braçal, quantos visitantes em média, mas é a primeira vez que me perguntam por quê? . E não tenho uma resposta clara. Só sei que me divirto muito, que fiquei mais criativo, mais aberto, mais conhecido, que aprendo bastante, que me surpreendo com a beleza e a diversidade da literatura brasileira. E enquanto houver alegria e contentamento, continuarei fazendo, sem por quê.

Luiz Edmundo Alves é editor da revista literária eletrônica Tanto.

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Teódulo López Meléndez: Quizás todo poeta ha soñado con tener su propia revista literaria. Quizás todo escritor ha soñado con tener una librería. Algunos más locos, como en mi caso, nos hemos metido a editores. Esas pretensiones generalmente van asociadas a la impotencia. Si las publicaciones existentes rechazan los textos, pues nos inclinamos a tener nuestro propio medio. Eso ya es posible hoy. Con Internet. ha terminado la prepotencia de la prensa escrita, han sido eliminadas las llamadas "listas negras" que algunos medios tenían por arrogancia o maldad, han llegado a su fin los periodistas que sólo entrevistaban a los amigos. La web ha permitido una insurgencia de las manifestaciones literarias. Las páginas web y los blogs son el nuevo medio de expresión, la libertad reconquistada de poder decir lo que nos venga en gana.

Todo esto es cierto, pero los deseos de fundar una revista literaria siguen allí, con la diferencia de que las fundamos en la web. Hoy las fundamos por las mismas razones de ayer, con las facilidades de no tener que usar papel y tinta ni andar mendigando en las oficinas gubernamentales una ayuda económica. Las fundamos, porque a pesar del carácter necesariamente gregario de poetas y escritores, tenemos un sentido de la solidaridad (especial y original) que nos impulsa a publicar a los colegas. Las fundamos porque la satisfacción de darle forma a un acto que reúne textos creativos no tiene parangón. Las fundamos porque, muchas veces sin estar conscientes de ello, un instinto nos indica que cada publicación nueva que nace es una batalla ganada a la muerte, a la perversión del idioma, al enemigo consumista que declara la creación literaria como algo superfluo. Las fundamos porque sabemos que en el lenguaje está la clave de la vida, porque sabemos que cuando el poema es esparcido estamos dando nuestra contribución para evitar la muerte de lo humano, porque sabemos que cuando la novela y el cuento son lanzados estamos transformando al mundo en un nivel muy pequeño, pero transformándolo. Cuando lanzamos el ensayo, sabemos que alguna minúscula idea se habrá colado para evitar el triste fin del hombre.

Las fundamos porque nos da la gana, esto es, encarnamos la voluntad soberana del ser, ejercemos el supremo valor de la libertad, utilizamos la suprema arma del lenguaje que es la que nos permite llamarnos humanos y tener esperanzas de no desaparecer de la faz de la tierra.

Teódulo López Meléndez, poeta, ficcionista, ensaísta e tradutor venezuelano. Dirige a editora Ala de cuervo, em conjunto com a escritora Eva Feld, e também a página www.aladecuervo.net onde veicula a revista literaria Logogrifo. Seu mail é teo@aladecuervo.net

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