ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

ZUNÁI EM DEBATE

 

Qual é a função da poesia?

 

André Dick: Algum dia, a seguinte cena: você em silêncio, cansado do mundo ao seu redor, num ambiente neutro, respirando através de uma palavra. Surge uma pergunta: afinal, qual é a sua função no mundo? Imagine-se o tom do afinal ameaçador, capaz de despertar calafrios. Função, cargo, ofício, ocupação. Tudo isso virá à sua mente, como se esperassem para você entrar em ação no momento seguinte. Este, ao contrário do que se imagina, nunca chega. E a ocupação de quem o observa é saber para o que você serve, o que você pode trazer de acréscimo para dentro da rotina social - onde, de preferência, você desligue a palavra. A cena interrompe a sua passagem através da palavra. Um longo fio. Um resto de sol contra a janela. Não se fala, a princípio, de ideologia. Saber o que fazer, adquirir uma função, é ao mesmo tempo - tentam encobrir o fato - encontrar uma ideologia, ir para dentro, e apagar o sol com a cortina.

Qual é a função da poesia? Subentender - para que serve, qual sua utilidade, sua importância prática, quer dizer pública. Por um momento, desligar a palavra. A função da poesia, no caso, esconde a minha. Até onde ela é minha que não seja sua. Até ontem visitávamos aquela linguagem, hoje passamos por essa outra. Podem ser diversas as respostas: minha poesia tem a função de libertar. Outra: minha poesia tem a função de fazer o bem. Mais uma: de revelar a verdade. O melhor do ser humano. De se comunicar com o grande público. De se inserir na coletividade. Eterna função de fazer algo.

Onde se pode ser livre, para encontrar o lazer da falta de função? Encontramos na poesia, antes de tudo, uma disfunção, um desvio na trajetória linear: o descanso. Quando o corpo não vai bem, ele provavelmente esteja desconjuntado, ou cheio de disfunções. Está pedindo para se apagar. Como quando se escreve: a escrita pergunta se não quer que se apague ainda mais. E a poesia teria alguma importância no mundo mercantilista, ou mesmo alguma ideologia; teria uma função? Entre a falta e a supressão dessa falta, a poesia preenche cada pegada com a sombra anterior daquela que foi apagada. Outros escreveriam e escreverão sobre ela; é um espaço transparente, equivale ao pensamento ideológico do que alguns pretendem provar, mais do que a si mesmos, aos outros - e às vezes provam, mas, mesmo dizendo o contrário, sem a ajuda dela. Para que uma disfunção serve ninguém sabe. E passam a procurar uma linguagem menos dúbia.

Coloquemos a poesia como uma máquina, prestes a ser construída. Pense que depois de ser construída, você, ao invés de colocá-la em funcionamento, começa a quebrar sua engrenagem, só para experimentar a sensação. E o que sentimos passa a ser uma resposta para o descontrole. A engrenagem se motiva com tudo que a corrompe, a torna menos funcional. É simplesmente a engrenagem do pensamento, aquele inicial. Quando nos deparamos com a falta de engrenagem - e seria a falta de pensamento -, acaba caindo com o mesmo peso da palavra pensada no chão. Espalha-se sem que tenhamos tempo de recolher seus fragmentos.

Tanto quanto a poesia seria uma disfunção dentro de uma função. Ela se antecipa pela destruição de si mesma. Apaga o rastro que a persegue, um rastro de páginas e páginas. Um livro nunca encerrado (sempre aberto), talvez possa vir a se operar solitário; de repente passará mesmo a se destruir, levando junto sua função. Opera-se lentamente dentro de outro vazio, ainda mais intenso que o anterior, esta nova leitura na qual nos detemos.

Que utilidade se não há uma clareza de pensamento? Que clareza traz a poesia, o que ela especifica ao leitor. Assim, em busca de uma nova função e disfunção. Sobre uma página: à espera de uma nova escrita, que possa nos avisar de que não há ponto de partida nem ponto de chegada, apenas uma longa corrente. Foi isso que sempre nos impediu de estarmos a salvo da linguagem. Que a ausência de função é uma bifurcação, sem dúvida: para algum lado, que não seja o outro, a ausência se compromete apenas com a espera. Isso faz com que a duração da letra e da página não seja a mesma daquela sombra que me segue, como um rastro. Tenta-se iluminar uma nova página de leitura. As palavras sobre a folha serão semelhantes ao novo aviso de chegada da próxima leitura. Às pressas para atingir a outra margem da escrita.

Se entre a escritura e o vazio que a antecede, este espaço: uma disfunção em silêncio - a cabo da mesma solidão. E não será um novo recife, uma nova constelação. Dirá menos ainda das notas musicais pelas quais o texto foi inserido no panorama do abandono, sobre os mesmos ombros de sempre. Então faz do vazio a composição desse abandono. Restará a nossa única função: torná-la uma engrenagem menos comprometida em reproduzir, estar mais uma vez desamparado em meio às palavras, à espera de um regresso. Ali novamente estará a palavra reencontrada só depois que a emitimos em pensamento. Nesse regresso é que se constata que ela nunca partiu, que sempre esteve em seu ponto de partida, sem demarcação e, claro, sem função - ali nos encontramos com a tentativa de refazer outra leitura a partir da leitura já programada, quando, por surpresa, percebemos que nos falta uma engrenagem precisa. Delinear um pouco melhor a premissa de que sempre estivemos próximos, de que a próxima leitura trará sempre a disfunção do que já está em disfunção, pois um texto nunca se completa. Nem seu ofício.

O texto literalmente abstrai de suas folhas a mesma raiz que o preservava, com sombras ao redor. O que torna-se rasura dele passa a ser apenas o retrato de um desenho interminado (interminável): a mesma proporção que a leitura coloca sobre o vazio, a fim de perpassá-lo sem música ou origem, sem obrigação, apenas pela necessidade e pela segurança de estar atrás dele. Ali onde estivemos e para onde sempre voltamos, capazes de nos esquecer e recriar nossos precursores, nossos antecessores, a quem seguimos nesta engrenagem, até derrubá-la. Já seria ausência o bastante para indicar um novo caminho. E se isso implica uma retomada, não passa de uma função inútil, pois a poesia já estava lá, sem engrenagem, sem pensamento. Uma espécie de escrita ainda a ser criada: que um dia ela - em meio à confusão da engrenagem - funcione e acelere este pensamento.

Quanto ao ofício de escrever poesia; viver para escrever poesia; viver de poesia; ter como cargo a poesia. Desligar o sol com a cortina.

Ou uma disfunção.

André Dick, poeta e ensaísta, é doutorando em Literatura Comparada pela UFRGS. Publicou o livro de poesia Grafias, e prepara Papéis de parede (no prelo).

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Fernando Alves: Oferecer outro olhar sobre um mesmo objeto. Imaginei iniciar minha resposta pela multiplicidade das funções da poesia, enumerando-as e exemplificando-as. Minha "função" ao redigir essa resposta, todavia, é menos de crítico literário e mais de poeta. Por conta disso, seleciono a função da poesia número um, a favorita, a que toca o coração e estremece o pensamento: oferecer outro olhar sobre um mesmo objeto!

Objeto? Mas que objeto é este, então, passível de ser poetizado? Tudo. Um rio, uma conta de dividir, um perfume amadeirado, um vento mais forte, você que lê esta seção de debates, o passado, o feio, o futuro, o belo, a dor, a noite, Deus. Avessos que podem transformar-se um no outro. Contínuos que podem interromper-se e perder sua característica.

A poesia permite ao leitor ter duzentas e oitenta e nove mães diferentes na própria mãe, revelando-lhe a complexidade do humano. Permite arrazoar acerca da certeza do azul no mar de Camboinha de olhos fechados e descobrir que não necessariamente há nele azul, mas um verde atrevido. Permite paixão incondicional, amor e ódio, cenas de sexo explícito e implícito jamais imaginadas!

Foi João Cabral de Melo Neto quem pela primeira vez me cutucou, chamando minha atenção para esse olhar diferente que o poeta propicia. Fez isso com seu "cão sem plumas" (sem o saber, enxerguei um rio Capibaribe que jamais vira, ainda que já o tivesse visto...).

Observe que no parágrafo anterior escrevi "olhar diferente que o 'poeta' propicia". Essa variação é importante. Ernst Gombrich, o historiador da arte, pegou-me pelo braço e disse-me: "- Preste atenção, poeta: não existe isso que você chama de arte; o que existe é o artista!". Claro! Como não pensei nisso antes?

Então veio Fernando Pessoa com seu poeta fingidor que todos conhecemos e que não repito aqui. Sua mistura indissociável do poeta com a dor ofereceu-me a analogia que faltava: poeta e poesia confundem-se na indissociável amálgama da arte. Poeta e poesia confundem-se na indissociável amálgama da vida.

Oferecer outro olhar sobre um mesmo objeto. O poeta Chico Buarque diz:

"O poente na espinha
Das tuas montanhas
Quase arromba a retina
De quem vê"

E eu me calo, aproveitando esse novo olhar propiciado pelo poeta.

Fernando Alves nasceu em São Paulo, em 1966.  Publicou Contradição(poesia) em 1989, pela Scortecci, Cromatismo do fogo, cromatismo da água, cromatismo de ar (contos) (co-autoria), em 1990, pela Movimento, e O alfinete etrusco(poesia) em 2003, pela Carrenho.

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Izacyl Guimarães Ferreira: Complicada, a pergunta... que pode ser respondida com pouquíssimas ou muitíssimas palavras. Fico no meio termo, sem novidade alguma, só lembretes. Penso que a função da poesia, e de toda arte, será a de expressar a condição humana. Através dos sentidos e  da inteligência, provocar a catarse de que fala Aristóteles; ou, fugindo de termos já comprometidos como este: despertar a emoção do leitor, pela beleza ou força ou afinidade ou horror (ou tudo isso junto) de seus meios expressivos. Penso que a poesia faz ou deveria fazer isso ao dar testemunho de um tempo, um lugar, um sentir, um pensar, um acontecimento, algo. Penso nuns versos que já citei aqui e ali, do poeta John Berryman :"These songs /... / they are only meant / to terrify and confort".  Já Wallace Stevens diz, no poema Notes towards the supreme fiction que a poesia "must give pleasure". Soares Feitosa fala que ela precisa provocar "enlevo". Alberto da Costa e Silva disse que o grande poema nos faz "voar". Rachel de Queiroz certa vez perguntava se Bandeira sabia "quanto bem seus poemas faziam" Fiquemos só com estas aspas, deixando de lado os clássicos. Penso que a arte, a poesia entre elas, é uma forma de conhecer e dar a conhecer o mundo, a visão que dele tenha o autor. Seria essa a sua função? Mais, talvez. Sua missão. Poderíamos conversar ainda sobre se seria ou não função da poesia operar mudanças. No já citado poema Wallace Stevens diz ainda que "it must change" e tal mudança pode ser entendida de várias formas. Por mim, penso que seria uma capacidade de mudança de longuíssimo prazo, pelo acúmulo de cultura e civilização, por uma lenta criação de  consciência, capaz de influir no comportamento de todos nós, seja pessoal, seja comunitariamente. Sabemos que os poetas já não pesam na sociedade como muito antigamente. Talvez possamos esperar que, hoje, seu papel seja o de preservar e fazer avançar a língua e os recursos técnicos da poesia. Já seria bom como parte de sua função enquanto fazedores de poemas. E continuar na tentativa de mudança a longo prazo enquanto dá prazer, enleva, etc no curto prazo. Tentando resumir: emocionar, fazer pensar, enriquecer a humanidade e a língua, dar um sentido, uma razão à vida.

Izacyl Guimarães Ferreira  escreve (14 livros), traduz e comenta poesia. É diretor da União Brasileira de Escritores (UBE) e conselheiro editorial do jornal da entidade, O Escritor.

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Alfredo Fressia: Confesso que me desalenta a formulação desta pergunta, tento e não consigo responder. Imaginando que tenhamos uma idéia do que seja poesia (digamos, uma idéia recebida, potencializada por uma tradição, bela como são Sebastião e quem sabe sólida como as flechas velozes lançadas pelas vanguardas do século passado), a pergunta continua ferida dessa "Função" que parece o centro da perplexidade implícita. Porque só se a identidade da poesia não pedisse objetivamente explicações, se ela fosse de fato anatomia, então a Função resultaria fisiologia, a pedir respostas sobre o funcionamento daquele belo corpo martirizado.

A idéia da poesia como um objeto partilhado por todos (talvez porque feito por todos, segundo as Poésies de Ducasse?) e resultado relativamente inconteste de uma experiência adquirida em comum parece insuficiente, embora tranqüilizadora. Se só nos cabe meditarmos (e decidirmos) sobre a sua Função, é porque sabemos definitivamente que a poesia é uma Necessidade na economia de todo e qualquer grupo humano, o que já lhe outorgaria hegelianamente uma Função no duplo sentido de 1. elemento constitutivo de uma estrutura e 2. de serventia, utilidade doméstica (privada) e social.

Por isso devemos esperar que as respostas proponham um "não servir para nada" (o segundo sentido da Função) junto com as respostas que encampem o sentido estrutural e dialético, de conseqüências vastas e talvez previsíveis, daquelas que se reencontram nos manuais de Teoria literária: a Função expressiva, comunicativa, social, psicanalítica, de gênero, etc. Eu, por exemplo, e porque sou uruguaio, cidadão de um Estado que nasceu sem Nação, recuperaria com infinito prazer a poesia cuja Função consistiu na criação de um mito nacional. Tem tema mais interessante que um poema como Tabaré (1887), do Juan Zorrilla de San Martín? Como sou bi-nacional, minha parte brasileira discorreria sobre a poesia indianista (de Gonçalves Dias, mas não só de Gonçalves Dias) no século XIX, e a "negrista", segundo lembrou Mário de Andrade. Denunciaria para concluir o erro em que incorreu Torres-Ríoseco quando põe em relação Zorrilla e G. Dias (Nueva Historia de la Gran Literatura Iberoamericana, Buenos Aires: Emecé, 1972). E teria abordado um tema muito interessante para um semestre escolar. Para não ficar em estudos literários supostamente arqueológicos, falaria da Função da poesia na globalização. Discutiria com (contra, na verdade) García-Canclini as relações entre os centros hegemônicos e as periferias, e colocaria, entre outros, o tema da Função de resistência da poesia, suas Funções aglutinadora e de apuro mallarmeano da linguagem, hoje literalmente atropelada.

Bonito, né? Pano para manga de encher os olhos, mesmo, e quem sabe, a inteligência (o que não seria pouco). Mas continuaria desalentado. Porque terei ficado nos atributos sem ir ao substantivo da poesia. E pergunto: haveria uma poesia sem função? (Se houver, eu quero. Ou uma musa de lira em recesso, ou dormida, à toa. Por que penso em Valéry?). Chamaram-me para responder uma pergunta e sou eu quem quer respostas. Fico satisfeito se me disserem se a poesia é mesmo Necessária (como a História euro-cêntrica parece demostrar), e se, assim sendo, a musa seria mutável como as histórias e imutável como os deuses. É só pergunta, não ofende.

Alfredo Fressi, poeta e crítico literário. Desde 1976 reside em São Paulo, onde é correspondente cultural do jornal El País de Montevidéu. É professor de Língua e Literatura Francesa.

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André Luiz Pinto: Perguntar sobre a função da poesia pode, à primeira vista, ressoar na sua importância; mas é aí que a poesia surpreende; há como que uma cisão entre seu funcionamento e finalidade. Teleologia da distância, do imprevisível, do arrasta-pé - para com o leitor, para com o poeta -, jogo incomum de linguagem, onde a palavra provoca-nos, suspende nosso juízo, a saia das mulheres. Não sei... Qual a função da poesia? Melhor dizendo, que função evocamos à poesia? Partirá ela do mundo ou de mim? Um homem olha as flores e diz: veja são flores. Terá isso importância? Um homem angustia-se enquanto escreve, terá isso algum sentido? Óbvio que não. O poema é apenas uma declaração de guerra sem saber se há inimigos, são impressões, cortes bruscos de sangue, seu espírito sopra onde quer. Platão apercebera-se do grave perigo. Expulsem-nos! Para o poema não cabe teleologia. "Tão lindo seu poema", diz um; "não entendi nada", diz outro; "a linguagem reflete uma expectativa própria das novas vanguardas", diz um mais idiota. O poema, na sua inoperância, promove o acerto de contas entre os homens; todo poema é est(ético); é seu jogo de espelhos e simulacros que nos salva da verdade. Entenda Ethos por Virtú, excelência, propulsão para o salto, miscigenação de gêneros. Ou como coloca um poeta amigo, A. Pucheu, 'se inclassificável, é poesia'. É o direito à indecisão, à fronteira desguarnecida, ao ornitorrinco. Des(função) ou (des)função, não importa, o que mais surpreende é o fato de que, apesar de tudo, ela funciona; não da maneira como nós esperávamos, não com as respostas bem-vindas; no gueto da vida, o poema funciona (Disse?).

André Luiz Pinto é poeta, cursa filosofia pela Universidade do estado do Rio de Janeiro, em final de curso. Autor de Flor à margem(1999) e Isto (2003). Lançará neste ano Primeiro de abril.

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Ana Elisa Ribeiro: Há qualquer mania em se fazer essa pergunta, como se ela fosse possível. E há qualquer mania em querer responder a ela, principalmente quando se é um teórico fetichista. Se me perguntassem a função dos copos, eu diria que são utensílios que visam a facilitar que se beba algo. Há copos mais estéticos do que funcionais, assim como os há mais anatômicos ou menos. Odeio, por exemplo, aqueles de abertura estreita. E prefiro altos do que baixos. Se me perguntassem a função das tesouras, não gastaria muitas linhas pra dizer que servem para cortar. Assim como calculadoras servem para fazer contas complexas e trincos servem para trancafiar. Mas a poesia me parece livre de funções preestabelecidas. Quando me perguntam a função da poesia, penso imediatamente nos sentidos. Quando leio um poema, geralmente o faço após uma busca. Os poemas não me aterrorizam em pesadelos e nem se impõem em outdoors [em geral, não]. Também não os encontro com facilidade em jornais diários [desse jornalismo barato e descartável] e nem me aparecem na televisão a torto e a direito. Quando leio um poema, fiz certo esforço para tê-lo em mãos: num livro, num fanzine, num programa especial. Saí de casa para ouvir falar dele, entrei numa livraria e me dirigi à estante onde eles estão acumulados e empoeirados.

Então a poesia me parece ter a função de ser algo diferente do ordinário, do comum, do mediano em meu dia-a-dia. Empreendo uma busca [investigativa] pela experiência sonora/estética/plástica de ler poesia e saio da esfera da linguagem comum. Reconheço uma boa poesia em centésimo de segundo. Começo a lê-la e sei se é uma tentativa ou sua plena execução. É preciso exercitar algo 'solto', 'livre', para se alcançar a poesia, seja em prosa seja em verso. É preciso cuidar do olhar, tratar do que se olha, seguir com os sentidos, compor com esmero sintético. Para ser poético, deve-se ser particular, anestésico, distraído da média. A síntese poética muito me impressiona. E que função ela tem? A de me transportar ao inusitado, talvez. Ou também justamente o contrário. A função de me mostrar duas, três, dez vezes o mesmo por outra lente.  Ou de um ponto de vista renovador. A poesia não teria, então, uma função como a dos copos e tesouras, mas uma outra, menos utilitária. Não uma extensão das minhas habilidades motoras, imitação de características acentuadas [beber como se tivesse bico, cortar como se fosse um animal, escrever como se recorresse ao óbvio], mas uma extensão dos meus sentidos mais humanos, a reprodução de um jeito de ver que surpreenda. A poesia não serviria para explicar, explanar, comprovar, mas para parecer, fotografar, incidir. Quando leio poesia, paro e levanto a cabeça pra me reconfigurar, o que um copo e uma tesoura não fazem.

Ana Elisa Ribeiro é escritora, colaboradora do Estado de Minas e do Digestivo Cultural. Formou-se em Letras/Lingüística, sendo mestre na área. Atua como editora de livros jurídicos e professora na UFMG e na PUC-Minas.

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Deise Assumpção: Não vou me reportar aos teóricos, filósofos e poetas que tão instigantes se fizeram sobre o tema da função da poesia. Ao mesmo tempo, açambarco todo esse cabedal, que impossível fugir dele. E digo: a função da poesia é ser erotizante. Erotizar a linguagem. Que se desgasta (o inexorável) no cotidiano, tornando-se lugar-comum que não comunica a essência, apenas a superficialidade redundante. Assim como aquela árvore bem em frente de nossa janela que nunca enxergamos, até o dia em que a cortam.

Eros, mesmo banalizado hoje até as raias da promiscuidade com o pornográfico e despoetizado pelo conceito-chave científico da psicanálise (conseqüências de um deus ser por demais humano), mantém os vínculos com a força geratriz, com a força de coesão e perenidade do universo, com a força abstrata do desejo, com o dáimon capaz de alçar a alma, através da beleza de um corpo, à idéia de beleza. Continua portador do sentido de duplicidade e de atração e união dos opostos. Mantém, assim, ainda, as ligações com o Eros cosmogônico, demiurgo, iniciático. E a linguagem, a segunda criação, porque forma de o homem criar para si o universo (ou a segunda linguagem, se pensado este já como linguagem), somente logrará sê-lo na medida em que estiver plena de Eros, em que contiver tais caracteres essenciais. E é a poesia que resgata o Eros perdido da linguagem que se faz corriqueira.
O poeta vivencia a realidade. Como poeta, não a deixa passar rotineiramente. É atraído por ela, que o desafia pelo alumbramento ou pela incongruência. Na realidade, os dois casos - o encantar-se ou o inconformar-se - são o mesmo alumbramento. Um enigma.
Para decifrá-la e possuí-la, para desnudá-la, há que vesti-la com palavras. Mas não as redundantes empacotadas como ofertas em supermercados. Estas apenas embalam a realidade estandardizando-a e compartimentando-a.
O poeta há que deixar a imaginação criadora que sua alma não embotou (como a embotaram os que se deixam tragar pela rotina que se apresenta como deciframento claro e imediato do mundo enquanto o sabota) tecer os véus que a velam/desvelam/revelam: metáforas inauditas, jogos surpreendentes de sons, rupturas inesperadas... aquilo que, enquanto não encontramos, nem imaginamos, e que ele sofreu deliciosamente em procurar. Em primeiro lugar, tecê-los para si mesmo, que somos nossos primeiros leitores. Em seguida, para os outros, que há que capturar. Enigma do enigma.
O poder criador da poesia se concretiza pela atração pelo desconhecido, pelo outro que não o "eu", pela beleza desejada captável apenas como horizonte que foge e permanece acessível, pela duplicidade do mostrar-se e esconder-se.
O poema não pode se entregar de graça. Deve fisgar o leitor, aguçar-lhe eroticamente a busca do sentido. Que ele se emaranhe e se delicie em suas formas, retirando os véus do poeta e tecendo seus próprios, à medida em que o vai possuindo. Fecha-se (ou abre-se) o circuito. A mesma realidade desafiadora que fisgou o poeta está recriada para o leitor, que a recriará.

E será que uma tal poesia serve para alguma coisa? Não, não serve para nada, como arte que é. E, se quisermos que sirva para algo, temos que não deixar escapar justamente tal função essencial: não servir para nada. Mas, rompendo a rotina da linguagem, ela propõe a vivência profunda da realidade, desestabilizando o congelamento das formas de pensar pela contemplação crítica. Subverte. E poderá, sim, intervir no mundo. Até reportar-se a fatos e situações históricas definidas (já que o poeta se insere num hic et nunc pessoal e social) sem perder a essencialidade poética.

Deise Assumpção é professora e poeta, formada em letras com especialização em literatura brasileira. Participa de congressos da área, tendo vários trabalhos publicados. Em 2003 publicou Cofre, seu primeiro livro de poemas, pela Alpharrabio Edições.

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