ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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JOÃO

 

Volmir Andrajos

 

      Trovões ao entardecer. Um sol senil exibido atrás de uma fina cortina de chuva. Galinhas correndo, empoleirando-se nos galhos hercúleos das mangueiras. Cacarejos, confusão. Trovões ao entardecer. “Sol e chuva: casamento de viúva! Sol e chuva: casamento de viúva!”. O menino João cantarolava esses versos com tamanha euforia, que parecia ter vida suficiente para décadas, séculos de menino. Chuva teimosa, partículas de vidro, estrondos, fluidos estilhaços, peraltice nos domínios do astro-rei. João, menino. João, transbordamento. Água quente. Fogo líquido. Vida. Chutando o traseiro mole dos patos e atiçando o seu vira-lata, irmão fiel, sobre as néscias galinhas-d’angola. João, João... João era mesmo o diabo! Moleque encapetado! Querubim indizível. As criações, galinhas, patos, porcos, gatos, tudo, até as formigas, tudo o que era bicho se cagava quando estourava trovão em dia de sol. Sabiam, com uma precisão meteorológica, que os trovões deviam, através de um mecanismo secreto e invisível, provocar a locomoção daquele animal bípede esmagador – o João – que lhes vinha no encalço. João menino morte. E a vida de João era tão grande, tão elástica, tão vitória-régia, que às vezes precisava assassinar outras para ganhar mais espaço e amplitude. Que o digam os sapos! Ingênuos por natureza, saiam alegres pelo terreiro mal a chuva bafejava poeira. João, o perseguidor. Era sapo lançado no telhado, rasgado de rastelo, bola de futebol, queimado de sal. Malvadeza pulsante. Só o que João não matava mesmo, nem por decreto, era pintinho. Quando muito, colocava-os nos bolsos de seu calção sujo para levá-los em viagem e, sobretudo, para ver o desespero cômico da mãe-galinha: seus pezinhos e asas hesitantes revelando coragem, medo, raiva, nervosismo e, por fim, conformismo. Ninguém podia com João. João era Deus! O Deus que tinha nas mãos todos os bichos do terreiro e que conduzia e protegia os pintinhos borocoxôs, seu povo escolhido. E quanto ao vira-lata? Bem, esse não era bicho, não... O vira-lata era quase um irmão siamês do menino, extensão do corpo de João, membro peludo, caçador leal, divertido e impiedoso. Ai do gato enxerido que inventasse de mostrar as fuças na fazenda! Talvez o vira-lata nem fosse vira-lata... Quem sabe um dálmata, um perdigueiro, um pastor-alemão, um buldogue, mas não há como saber. A luz de João cegava tanto que não permitia qualquer esclarecimento sobre outros corpos: a bicharada, o quintal da fazenda, até o sabor das frutas-do-conde, tudo se esvaía plácida e silenciosamente ao redor dos passos terrivelmente neônicos de João. João... João era maior até que a água da chuva! João era mais que sol, era Sol-no-Entardecer. Quantos anos tinha João? Nove? Dez? Onze? Vá saber! O fato é que o menino já se ia. João partia em galope, que nem índio no pelo de seu cavalo pelos pastos festivos. O vira-lata em seu encalço. A chuva caindo mais forte. O sol agonizando. O galope ventania vulto veloz cada vez mais se distanciando. A chuva se vestindo de noite. Cavalo e menino e vira-lata, ebúrnea trindade, apequenando-se na direção do horizonte. João, moleque dos diabos, logo sumirá dentro do sol ancião. E o sol: passagem secreta, portal se fechando. Prelúdios de escurão.

      Silêncio.

      Pausa anti-cronológica: antes de desaparecer dentro do globo escarlate, João, longe, longe, longe, cessou o galope. Imóvel, João cavalo vira-lata, sem plural, uno. Estátua de luz petrificada por um relâmpago contínuo. Virando-se então para trás, o moleque parece estar se despedindo de alguém. Possivelmente daquele velho caboclo sentado na varanda com seu pito. Então o velho sorri prateadas lágrimas. “Sol e chuva: casamento de viúva! Sol e chuva: casamento de viúva!”. João, moleque esperto, ao ouvir o velho cantarolar os seus versos, entende tudo: bicharada, vira-lata, cavalo, menino não passavam de luz colorida dentro do olho gigantesco de um velho caboclo cheio de recordações sol-chuvosas. Quantos anos tinha João? Quem pode saber? Meninos, os meninos de verdade, fingem que envelhecem.

 



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Volmir Andrajos é mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS e atualmente está vinculado ao programa de doutorado da UEL. Atualmente é professor efetivo da rede estadual de ensino de Mato Grosso do Sul e colaborador em projetos de extensão desenvolvidos pela UFMS e UEMS.

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