ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

O HOMEM DA CICATRIZ


Ronaldo Bressane


De dia, escrever, tomar cafezinhos, ler jornais no McDonald's. De noite, beber Jack Daniel's, comer chocolates ou cus, ler um livro sobre o surrealismo francês e pensar como ficaria seu corpo lá embaixo estatelado no asfalto, chapado de maconha. De dia, no PC, escrever mensagens, mandar cerca de trinta e-mails das 9 às 6, contando coisas pessoais, extremamente pessoais, ouvindo isso de outras pessoas, tratando de assuntos pseudamente profissionais, pedindo coisas, favores, retribuindo, oferecendo favores e gentilezas, quase sempre muito gentil, mesmo, e tudo enquanto trabalha, ou seja, o que é trabalhar? Quase não fazer nada, conversa fiada transubstanciada em memorandos, anotações, idéias, resenhas sobre fatos alheios e reuniões em que se finge um interesse inviável pelo que diz o chefe, passeando pelos corredores vazios da firma assuntos como futebol ou guerra, elogiando ou metendo o pau, dissimulando intrigas e mexericos, comentando as bundas das mulheres, e, se der sorte, numa hora de almoço perdida no tempo, foder aquela assistente gostosinha [desesperado estupro da noite no dia]; de noite, ou muito devagar ou muito muito rápido, no Mac, tentar escrever, num simulacro de diário, sua vida reinventada, criando mentiras aos amigos, rindo falso no telefone, comendo coisas estranhas e quase sempre mulheres estranhas, estranhas que de repente ficam bem naturais, essas mulheres de mil anáguas e calcinhas e aí nuas nuas nuas de dizer até mesmo eu te amo.

O dia rasurado por signos conhecidos, a rotina equacionada pra não dar errado nunca. Nunca o sinal se abrir lento demais, nunca o carro da frente demorar, nunca chover pra caralho ou fazer sol além do bastante, nunca falar com o mendigo no semáforo, nunca cometer imprudências ou desperdiçar bons-dias, esconder-se, profundamente de si esconder-se, no cansaço do sono, na pedra do sonho, lavrando a certeza de que amanhã sim, amanhã talvez. E todo dia, entre madrugada e manhã, a cicatriz cada vez mais aberta e funda, entre crepúsculo e lua formulários agonizam, secretárias se ocultam nas casas dos maridos, assistentes viram um porre, vais pra puta que pariu que morreram amargos no âmago da garganta, e então a sede, a sede da noite, porém junto um arrependimento, de sensação de lixo, suor grosso expulso dos poros, expulso do dia, e então exilado, insulado. [Mas mais preciso. Pois a cada despertar, outro delírio abortado.] Um dia, ligar o foda-se. Um dia, a noite plena. O sol que se dane. A cicatriz, o próprio sol.

Vila Madalena [SP], outono, 1999

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Ronaldo Bressane, escritor e jornalista, nasceu em São Paulo (SP), em 1970. Publicou a trilogia de contos A Outra Comédia, formada por Os Infernos Possíveis (1999), 10 Presídios de Bolso (2001) e Céu de Lúcifer (2003), além do volume de poemas O Impostor [(2002). Na Internet: www.fakerfakir.biz.

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