ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

TODOS OS CACHORROS SÃO AZUIS


Rodrigo de Souza Leão


Capítulo I


Engoli um chip ontem. Danei-me a falar sobre o sistema que me cerca. Havia um eletrodo em minha testa, não sei se engoli o eletrodo também junto com o chip. Os cavalos estavam galopando. Menos o cavalo-marinho que nadava no aquário.
Ele tem um problema mental. Será que tem alguma seqüela? No fundo deste meu mundo, lá no quarto escurecido por doses de Litrisan, veio um psiquiatra e baionetou uma química na minha celha esquerda. Enquanto outro puxava a minha banha, esticando e esticando para que não sentisse a injeção de Bezetacil.

Bezeta.

Bezeta.

Uma dor na bunda imensa. Tudo girando ao meu redor e eu girando também. Tiro uma meleca e coloco na mesa do canto, bem longe da escuridão no quarto. A escuridão é acética. Só o pessoal de branco pode freqüentar aquela linha impura. Seguram-me de novo. Recebo o beijo de minha mãe. Deve ser dia de visita. Acordo e como uma lasca de goiabada com o sanduíche de atum que mamãe trouxe para mim. Escuto uma música tão alta que não entro nos meus pensamentos e estou fora, agora a cocaína não vai chegar. A conexão foi interrompida.

Mal mamãe chega, mal mamãe vai.

- Ele continua achando que engoliu um chip.

Ela diz que tudo começou há uns dez anos quando eu achei que havia engolido um grilo.

- Quantos grilos você me fez engolir, filho.

Minha mãe disse isso afagando meus lábios e me dando um beijo na bochecha. Por alguns segundos me lembrei de algo que havia acontecido no dia anterior. Eu havia quebrado toda a casa com uma fúria gigantesca. Nunca mais tomo Haldol na minha vida.

Foi por você não ter tomado o Haldol que você ficou assim, diz o chip. E eu começo a falar: "Só no Anhambi é tupi. Só no Anhambi é tupi."

O engolidor de espadas engole uma nesga de fogo por vez. Tá todo mundo engolindo alguma coisa neste exato momento. É hora do jantar. Mamãe se foi. A música volta a me colocar fora de mim.

Entro no quarto. Tiro o pau pra fora e começo a bater uma punheta. Dança da motinha. Dança da motinha. Eu engoli um grilo quando tinha meus 15 anos de idade. Foi a primeira vez que devia conviver comigo mais intensamente. Salvei uma casa do cupim maldito que queria destruir. Eram cupins gigantes. Tenho certeza de que salvei aquela casa. Tenho certeza de que por alguns segundos fui Jesus Cristo.

Ainda continuo na jaula. A minha boca está fechada com uma bocarra. Meus pés estão presos.

A música sai de mim e volta, não posso causar mal nenhum a não ser a mim mesmo. Tudo começou com um grilo. Havia um grilo naquele primeiro dia. Havia um gene também. Da mesma forma não, mas de uma outra forma. Estou engolindo tudo, o tempo todo. No canto escuro do quarto, que é onde só vão os ratos. Sou podre. Porco. Imundo. Sou selvagem.

"Quantos grilos você fez eu engolir, filho."

Olho o jornal e não consigo ler nada. As doses devem estar altas. Porque eu não fiz nem quarenta anos e não consigo ler de perto. Arregaço as mangas da camisa e vou jogar sinuca com o Ruy Chapéu do lugar, que é um gari da Comlurb internado por utilizar em demasiado a bebida até em horas de trabalho. Antes, uma crente para a gente faz uma roda e manda que alguém reze. Ninguém ali sabe rezar porra nenhuma. São todas almas sem paraíso à vista. Eu começo: "Pai nosso que estais no céu..." Pelo menos eu sei rezar. A crente disse aleluia. Ela segurou a minha mão. Eu tirei o pau pra fora e num pude jogar sinuca. Voltei para o cubículo três por quatro onde me colocaram para sorrir com baionetadas nas veias. Segura a banha e estica a banha, e toma mais injeção.

Tudo começou quando engoli um grilo em São João da Barra. Eu tinha 15 anos de idade. Estava indo ou voltando. Sempre estava indo ou voltando. Só parava pra voar. Assim eram meus 15 anos, e foi como tudo começou. Nenhuma mulher saiu de mim nunca. Fui eu sempre que entrei em minha mãe. E lá estava ela bela e bonita, transando com papai. E eu vi, e era apenas mil novecentos e setenta. Não foi um trauma. Eu costumava andar com um cachorro azul de pelúcia. Meu cachorro não era gay por ser azul. Só era azul. Também não tinha as noções de feminino e masculino naquela idade, ou tinha. Na verdade eu já me masturbava, e papai com muito jeito pedia para que eu tirasse a mão do meu pinto. Lembro-me de uma psiquiatra nos meus verdes 15 anos que me dizia que eu era homem porque me masturbava, não tinha porque ter crise de identidade. Eu não tinha crise de identidade porque eu vivia correndo atrás daquela mulher no horário da sessão. Ela chegou a me ameaçar, dizendo para o meu pai que se eu continuasse a querer agarrá-la eu teria que sair da análise. Ela falou que não agüentava dar conta de mim e reclamou porque eu não fazia um desenho, não brincava com uma massinha. Eu imitava um golfinho deitado no divã. Meu pau ficava duro e eu friccionava o tempo todo enquanto o golfinho nadava dentro de mim.

Uma vez, virei uma planta por uma hora de sessão. A mulher pensou que eu estava em estado catatônico. Ela ficou nervosa. Foi a mesma coisa que fiz com uma namorada, e ela teve a mesma reação. Fiquei sem falar e parado. Como se tivesse engolido uma baleia. Durante esta uma hora, a baleia que estava dentro, estava fora, e eu vivi preso dentro de um manicômio. Os manicômios são lugares muito bonitos. São lugares com muitas flores e muito arborizados. Não fiquei num lugar cinco estrelas, também não fiquei no pior lugar, mas vi muita coisa quando Alfonso me dizia que ia para Paracambi. Paracambi é aqui.

Tudo era um pouco ficar calado o tempo todo como se ninguém merecesse que você falasse algo nobre e importante.

O que todas aquelas pessoas de branco tinham a ver com o fato de eu estar vomitando sangue? Me levaram para o Miguel Couto. Pensaram que eu estava com tuberculose. O Miguel Couto era o hospital referência para casos de dengue. Havia uma epidemia de dengue na cidade. Havia muitos hipopótamos deitados. Algumas tartarugas andando de quatro rodas. Passei pela porta do hospício. Quis me levantar e fugir. O pior: fugir pra onde? Quem iria acreditar na idéia de que estava com um chip implantado dentro de mim. Havia tanta gente que se o Maracanã em dia de jogo do Flamengo estivesse ali não seria nenhum eufemismo.

Botaram tubos em mim e começaram a fazer sucção. Fui abduzido por extraterrestres.

Eu via uma luz passando pelo meu corpo de menino de cinco anos e segurei meu cachorro azul. Desmaiei por alguns segundos. Depois Fronsky estava lá:

- Voltaremos para te buscar quando você tiver 18 anos.

Macas por todo o campo. Com gente com soro andando. Tubos saindo da boca de seqüelados. Tudo ali era Acneton. Da minha veia, tiraram o meu sangue. Eu agora estava indo tirar uma chapa torácica. Como que um cara gordo como eu pode estar com algum problema que não seja obesidade? Eu deveria estar num spa, e não no Miguel Couto com aquela crise de dengue. Uma samambaia começou a crescer do meu lado feito um pé de feijão. Eu fui subindo as escadas ancorado por dois médicos fortes e gordos como eu. Havia toda aquela gente pobre, superpobre: aquele era o Brasil. Uma zona total. Gente caída no chão. Gente chegando morta. Gente morrendo. Uma fileira de corpos caídos com argolas de etiqueta nos pés. Todos munidos de seus prontuários. E aqueles médicos tão jovens, que não sabem muito mais do que eu sei de biologia, fazendo gozação com a sua cara. "Olha que cara gordo!" "Que homem gordo!" "Que baleia!" Um dia completei um triatlo e terminei entre os primeiros da minha categoria. Estou gordo agora e dormindo como no dia do triatlo. Vivo sedado e cheio de doses altas de remédio na veia. Tudo para ser invadido por uma música, tudo pra manter a boa ordem do estado. Somos a minoria, mas pelo menos falo o que quero.

O bom do cachorro azul era que ele não crescia e não morria. O negócio era eu cuidar para que ele não envelhecesse. Poxa, no ano 2000 vou ter 35 anos. Vou estar tão velho que mal sabia que estaria velho mesmo. Eu escovava a pelúcia do bicho. O cão azul era a minha companhia para todas as horas. E se o cão azul existisse. Seria do grande caralho ter um cão azul. Será que se ele tivesse um filho nasceria azul também. Se ele pudesse latir e pudesse comer, o que comeria um cão azul? Ia ter que tomar alimento e remédios de sua cor. Muitos remédios são azuis, dentre eles o Aldol. Eu tomo Aldol para não ter nenhuma ilusão de que morrerei um dia louco, num lugar sujo e sem comida. É o fim de qualquer louco. Uma oligofrênica, dos seus setenta anos, uniformizada, surge diante dos meus olhos e me dá um beijo na boca. Vejo estrelas cor de rosa. Elefantes carregando Rimbaud na África. Verlaine comendo sua mulher, mas pensando em Rimbaud. Eu estou pensando em Nastassja Kinski e em seus seios pequeninos em flor. Eu estou no lado escuro e mal posso me mover, mas dá para eu me masturbar muito devagarinho. Eu gozo e minha mão fica toda branca, tomada de sêmen. Minha mão vira uma luva branca. Eu acordo às cinco horas da manhã com o esporro colossal de um enfermeiro. Durmo mal. Acordo mal. Não sei qual dos dois pesadelos é o pior: acordado ou dormindo. Saio da jaula. Já estou na jaula há um bom tempo. Quando me tirarão de lá e me deixarão ficar com os outros. Entro na fila para tomar um café da manhã. É um café com leite que tem mais água do que leite e um pão com uma passada de manteiga na ida. Eu pago para estar neste lugar, mas só a ida da faca no pão não está nos custos. Hoje eu acordei querendo dizer coisas bonitas. Aproveitei um pouco de tempo que me deixaram livre do lado de fora e apanhei uma flor no jardim. Levei a flor para o quartinho. O enfermeiro encrencou com a flor. Deu-me um esporro.

- Você virou veadinho? Que coisa horrorosa é esta. Gordo e veado.

- Eu só queria ver algo colorido aqui do fundo.

Vou comunicar esta sua vontade a um psiquiatra e ele falará com você. Eu aqui sou só o enfermeiro. Cuido de vocês, os enfermos. Meu cachorro azul não tinha nome. Nada que eu gosto tem nome. Tudo que é perigoso tem nome. O nome não é dado para diferenciá-lo. Senão nenhum nome seria igual. O nome é dado para você se igualar ou ser diferenciado dos outros. Ele voa. Ele anda em aeronaves. Ele é o meu cachorro azul. Tem outra coisa boa em relação aos cachorros de pelo e osso: ele não faz cocô e nem xixi pela casa. Tudo que tenho é o meu cachorro azul. Há muito tempo que eu não brincava com ele. Até quebrar tudo lá em casa. Tava um tempão sem olhar pro meu amigo. Sem passar uma escova nele. E se em vez de cachorro fosse um elefante de verdade meu bicho de estimação? Imagina a quantidade de merda que iria ficar no meu quarto. Ia dormir na merda. Mas pelo menos ia ter uma ducha mais forte do que a lá de casa para tomar banho. Com a tromba ele poderia me molhar todinho. Um elefante domesticado incomoda muita gente. E se eu tivesse dois. Seria um sonho. Eu ia incomodar meio mundo. Ia fumar uns baseados dentro do elefante e soltar pela tromba. Porque estes bichos todos sou eu. Menos o cachorro azul. O cão azul é da cor do Aldol. É meu amigo.

- Você quer ver algo mais colorido?

- Quero.

- O que você quer ver?

- O Sol.

Amanhã iremos à praia e jogaremos bola e devoraremos as joaninhas e afogaremos os tatuís. Vamos viajar para Ibicuí na casa de amigos que serão amigos pela vida toda. Eu tinha um amigo que estava com Aids, mas o cara foi forte e agüentou, e eu tenho que agüentar esta porra toda.

Nós só fazemos eletrochoque com sedação. O doente não sente nada. Quem sabe levando uns choquinhos ele volte ao normal. Quem sabe tudo volta ao normal. Vivo com uma velha de noventa anos. Eu gosto dela. Mas ela defeca em tudo. É lambona para caralho. Mas eu gosto da velha. Um dia a velha danou-se a comer isopor e plástico. Passou mal e teve que ser internada. Enfermeira! Um grito lancinante vindo do âmago de um dos internos. Por que não internam as mulheres junto com os homens? Será que ia virar uma confusão sexual geral? Acho que louco não tem tempo de pensar em sexo. Alguns são vistos parados e se bulindo. Mas isso ocorre mais nas ruas. Estou sem o meu cachorro azul aqui, estou despido do que sou. Na prática não sou ninguém. Não adianta eu gritar socorro. Aqui todos estão sendo levados a algum lugar pior. E o inferno não é o pior dos lugares.

Meu pai aparece num dos dias de visita. Foi ele que me internou, mas eu não tenho ódio no coração. Eu gosto deste homem. Ele me dá um beijo e pergunta "como cê tá meu filho?". Eu digo que quero sair da gaiola. Ele diz que sairei quando estiver melhor. Movimento-me em sua direção e dou um beijo em sua face. Será o beijo de Judas? Será que trairei meu pai em minha loucura. E se agora viessem dois homens e me crucificassem e me colocassem de cabeça para baixo. Será que a cruz ia agüentar a banha toda?

Antes da minha internação maior, já havia sido internado outra vez, e outra vez tinha ficado na gaiolinha. Minha mãe me mentiu dizendo que eu havia ficado na ala melhor daquela clinica. Não, havia estado no Carandiru. No pior lugar da clínica. Lá onde ficavam os casos sem solução. Mas eu achava que tinha solução. Apenas algumas pessoas estavam me perseguindo, e se essas pessoas resolvessem dar uma festa para mim naquele dia. Naquele dia em que a chuva abundava foi internado o Temível Louco. Temível Louco, quando pequeno tinha atitudes psicopáticas. Já havia matado muita gente, segundo rezava a lenda. Temível Louco me deu um beijo na face direita e deu duas voltas em volta de mim, disse que seria meu amigo. Isso foi na minha última internação. Não sei se lembra de mim.

Era hora do almoço e estavam todos os loucos na fila quando chegou o Temível Louco, que cuspia onde queria, urinava onde queria, defecava onde queria, peitava os enfermeiros, e só não era líder porque louco tá cada um na sua nóia. Louco não pensa na coletividade.

Eu tinha uma paranóia muito louca. Uma espécie de compulsão. Toda a vez que me davam três remédios, eu tinha de tomar o quarto. Eu enchia tanto o saco que me davam quatro logo. Se tomasse três, coisas horríveis podiam acontecer.

O Temível Louco começou a comer tudo que via. Mordeu a falangeta de um outro louco. Foi repreendido por enfermeiros. Todos os enfermeiros eram gordos. Os que não eram gordos eram fortes.

Eu sempre dava um cigarro para um louco que no almoço dava cabeçada nas paredes. Imagina se esse doido fosse jogador de futebol. A cabeçada dele ia ser poderosa. Acostumado a cabecear paredes, ele ia estourar as bolas de futebol por onde andasse jogando. Quem sabe a seleção brasileira não iria convocá-lo?

- Toma um cigarro. Fuma o cigarro todo. Vê se não dá mais cabeçada na parede.

Eu já estava tomando tanto remédio que estava com aquela baba elástica bovina e viscosa, como dizia o escritor.

Depois do almoço eu contava as estrelas do céu e não via nenhuma. Depois do almoço eu defecava no banheiro aquela comida ruim. Não havia nenhum interno que agradecia por aquela comida com uma boa oração. Por que o cara é louco tem que comer o pior, com lasca de goiabada? A única coisa boa era a lasca de goiabada. Era o tipo de goiabada cascão que grudava no dente. Os loucos comiam. Minha mãe, toda vez que vinha me visitar, me mandava tomar um banho. Eu tomava um banho onde os outros tomavam. Era um lugar limpo, mas que tinha de ser limpo toda hora. A cada minuto vinha um louco e cagava no chão e deixava a merda toda lá. Imagina se houvesse um louco que fosse uma pomba. Ia sair voando e defecando por aí. Não ia ter mais careca de vovô, vidro de carro, chapéu ou boné sem merda incrustada. Mas loucos não voam, fazem sua merda parados mesmo e às vezes se lambuzam todos.

Minha mãe me trazia o sanduíche de atum que eu devorava como se fosse filé mignon. Eu tinha saudade de casa.

- Mãe, quando eu vou sair daqui? Vou sair pior do que entrei?

Se ameaçar a gente fica mais tempo. Por que você só fica na penumbra deste cubículo.

Um dia vinha minha mãe e no outro vinha o meu pai. Parecia que eles tinham a consciência pesada por ter me internado.

Eu quebrei a cristaleira.

Eu quebrei os copos de vidro todos.

Mas eu consegui livrar a casa dos maus espíritos.

Lá vem a turma me ministrar as injeções. Eles puxam a banha e dão a Bezetacil.

Bezeta.

Bezeta.

Eu quero uma Bezetacil. Bezetacil por conta de uma ferida que tenho na perna. Preciso perder 50 quilos. Uma enfermeira até disse que eu era bonitinho, mas precisava perder uns quilinhos. Eu podia fazer o programa da casa da banha. "Vou dançar o Cha cha cha... Casas da Banha." Era um porco. Suíno. Sujo. Não tinha noção do que era degradante. Mas um dia, sem dúvida, ia criar alguma espécie de biodegradado e ia limpar minhas impurezas e ficar limpinho. Limpo por fora. Por dentro estaria sempre com aquelas marcas que os animais deixam, das mordidas. Com os hematomas na alma. Estaria sempre me procurando e encontrando pedaços aqui e acolá. Temível Louco passou ao fundo. Ele já estava fora do cubículo dele.

Quando vão me tirar daqui? Enfermeira!

A primeira liberdade é sair do cubículo. A segunda liberdade é andar pelo hospício. A liberdade, só fora do hospício. Mas a liberdade mesmo não existe. Estou sempre esbarrando em alguém para ser livre. Se houvesse liberdade o mundo seria uma loucura com todo mundo. Eu podendo sair por aí com Rimbaud e Baudelaire. Viajando para Angra dos Reis.

Rimbaud matou uma onça que circundava o meu corpo outro dia, de noite. Outro dia, de dia, comemos junto a gororoba do hospício. Eu e Rimbaud. Ele está internado devido a drogas. Ele manca um pouco. Deve ter seus quarenta anos. Cheguei a perguntar o porquê só escreveu tão pouco tempo. Ele me disse que detestava escrever. Eu gosto é de sentir o vento sobre os meus cabelos. Há brisas perigosas para um cara franzino como Rimbaud no hospício, mas ele é um cara safo, sabe se ver livre das adversidades. Logo estará recebendo alta.

De volta ao cubículo e as injeções. Eles não confiam mais em mim. Só dão remédios via injeção. Acham que eu vou cuspir o remédio ou malocar em algum lugar. Que raiva tem de mim esses médicos. Vem cinco me segurar. Eu me debato como uma baleia. Mas depois eu fico quieto. Depois eu me aquieto. E quase não sinto devido ao tanto que puxam a banha. Eu quase nem sinto a dor das injeções.

Abriu um belo arco-íris que só eu via através de uma janela ao longe, bem ao longe. Aquele dia eu chorei por estar sozinho. Chorei por não ter um emprego. Chorei por não ter uma mulher. Chorei por não ter filhos. Chorei por não ter uma família. Chorei por ter 37 anos de idade e viver ainda como um adolescente.
Por que você está chorando Gordo? Eu choro pelos gordos do mundo, pelos que querem comer agora uma torta de maça ou um brigadeiro, mas não tem dinheiro para poder comprar todas as guloseimas do mundo. Eu mesmo choro por que queria te comer, ó filho da puta? Te comer assado. Ia fazer que nem os canibais e ia comer gente. Mas eu prefiro não ser tão doido e comer açúcar. Bomba de chocolate, mil-folhas, sorvete de flocos, cocada, pé-de-moleque. Ia virar a dona redonda e estourar de tão gordo.

A única hora em que eu saía do cubículo era no horário das refeições. Mas tinha um enfermeiro que não tirava o olho da turma nenhum minuto. Imagino se eu fosse um funcionário do hospício. Deve ser muito difícil lidar com toda aquela clientela, com gente de todo tipo. Com caras da Zona Sul e com garis da Comlurb. Com velhinhos ergofrênicos e com procuradores-gerais da república senis. Os loucos mesmo devem ser os mais fáceis de serem cuidados. Todas as vezes eu desacreditava em Deus. Se havia um lugar como o hospício era sinal de que Deus não existia. Ou ele existia e não queria saber de quem estava dentro daquele pequeno inferno.

Eu era criança ainda e estava no clube me divertindo na piscina quando vi uma criança pequena, menor do que eu, um recém-nascido, se afogando. Eu fiquei impactado pela cena e demorei a salvar a criança. Estava ali parado. Bobificado. Veio outro guri. Foi mais rápido, pegou a criança que se afogava e a tirou da piscina. Foi feita toda uma festa para o herói. Uma festa que era para mim. Eu fiquei quieto, no canto, percebi neste dia que uns nascem para ser heróis, outros nascem para serem seres comuns. Eu estava condenado a ser um ser comum. Jamais seria um super-homem.

Eu voltava pro cubículo. De bom só a goiabada e a bundinha da enfermeira. Às vezes eu vou dormir e fico pensando na enfermeira de noite. Ia gozar só de botar meu corpo sobre o dela. Só de poder sentir sua carne sob a minha. A primeira vez que fiz sexo foi com um Javali. Seguraram o bicho pelas patas e falaram penetre. Eu penetrei meus quinze centímetros dentro do bicho e aí o soltaram. Eu gozava justamente porque o javali pulava e pulava. O cu do bicho era espinhoso. Doía meu pênis. Como doía meu pênis. Depois de muito tempo o bicho ficou cansado. Gozei seis vezes direto. Acendi um baseado e ele foi para outra esquina, e eu fiquei ali chapado. Eu usei muitas drogas na adolescência. Uma vez, quando tomei um chá de cogumelo, fui parar nas cisternas da casa batendo um papo filosófico com o meu eu. O pior é que eu encontrava resposta. Nem sabia que tinha um eu superior. Arriscava umas perguntas sobre o futuro e o eu me dizia tudo. Só que depois da ação do chá de cogumelo não me lembro de nada que eu disse.

"Um papa Mike entrou armado."

Eu ouvia os tiros da ação. Andava de um lado pro outro. Minha adrenalina aumentava na madrugada. A madrugada começava com aqueles tirambaços. Será que alguém estava ferido.

- Ontem, mãe, deram tiros aqui dentro. Conta pra mim o que houve. Conta pra mim. Você sabe que eu sou curioso.

- Se isso ocorresse eu te tiraria daqui na hora, meu caro. Você está aqui para melhorar. Parar de destruir a casa de mamãe e ponto.

Na verdade tinham matado um cara lá dentro. Um policial militar atirou no outro com uma arma branca. Temível Louco estava envolvido.

Todo dia antes de dormir eu rezava a ave-maria. Todo o dia eu pedia a Deus que me tirasse dali o mais rápido possível e que o mais rápido fosse o dia seguinte. Depois eu não acreditava nem em Deus e nem na ave Maria, mas eu rezava. Não custava nada rezar. Não pagava nada pedir. Algum crente num dia de domingo aparecia bem perto da minha cela e deixava um santinho. Eu olhava e lia quando as doses não eram altas e me deixavam ler, depois rasgava o folhetinho. Meu Deus! Os crentes estão ganhando o mundo. Até aqui eles vinham para angariar os fodidos. A religião virou uma sacanagem do caralho. Acho que sabiam que havia muitos alcoólatras lá dentro. A religião não é só o ópio do povo. Mas é o que mantém o povo feliz. Triste do povo que precisa da religião para se apoiar. É pior do que um louco que tem cura, mas precisará sempre de um apoio de outra pessoa para ser feliz. É melhor ser louco incurável.

Temível Louco comia a comida dele com a mão. Dizem que ele matou gente e tudo. Sei que nos dias de visita ninguém nunca veio ver Temível.

As pombas voavam no céu prontas para defecar em alguma cabeça ou algum vidro de carro. Lembro-me de uma vez em que um doente mental levou formicida para dar as pombas. O resultado foi aquele rastro de pombas pelo chão. Mortas. Todas elas.

Havia um louco entre todos que era homem, mas se vestia de mulher. Gostava de dar cabeçadas na parede e vivia tremendo. Outra lembrava a minha avó por parte de mãe, sempre muito elegante. Outra, ainda, tinha hábito muito estranho: enchia um copo inteiro de café e outro de leite e tomava cada um sem misturar. Não era coisa de gente louca. Uma vez cheguei perto dela e ela falou de Heráclito e Parmênides com um sotaque espanhol. Era chilena. Fiz toda uma ficção na minha cabeça de que lutara por Allende e perdera como todos os chilenos. Fora perseguida política. Recebeu os maus-tratos do estado. Foi torturada e acabou num hospício do Brasil. Ela era professora de sociologia. Com certeza deveria ter filhos que não sabiam de seu paradeiro e viviam de lugar em lugar procurando a mãe. Quantas coisas os governos fazem para destruir a vida dos que incomodam. Incomodar deveria ser condição de bom funcionário estatal. Porque ver as maracutaias e não fazer nada, ver o povo perdendo força, o povo sem dinheiro perdendo dinheiro, pagando salários altos a burocratas...

De súbito ouvi berros: "Aahhhhhhhhhhhhhhhhhh!" Desespero. Alguns internos estavam fazendo arremesso de oligofrênicos. Pegavam-nos e jogavam oligofrênicos para cima e numa vala também. Internos menos loucos comandavam o evento. Sim, aquilo era um evento. Uma espécie de ritual.

Eu continuava com a minha paranóia e com o meu chip implantado dentro de mim. Tendo engolido um grilo aos 15 anos. E com seis tendo sido visitado por extraterrestres que me buscariam em casa com 18. Já havia passado dez anos e os extraterrestres na vieram me buscar. Fronsky não veio me buscar. O chip é para a CIA e a KGB me dominar. Sou importante porque sei peidar sem sentir o próprio cheiro. Desenvolvi uma técnica de filtragem. Brincadeira à parte. Sempre me senti um ser perseguido. Ando nas ruas sempre olhando pra trás e de vez em quando saio em desabalada carreira e correria. Uma vez meu psiquiatra pegou o ônibus comigo para provar que não havia problema nenhum em andar de ônibus no Rio, na Zona Sul. Morreu em 2000 paus, mais o relógio. É que o ônibus foi assaltado.

Pegaram uma interna e arremessaram ela. Os doidos tavam arremessando todo mundo que aparecia na frente deles. Jogavam num barranco. A pessoa podia se machucar, mas os outros loucos riam e queriam mais. Formavam uma fila para serem arremessados barranco abaixo.

A noite chegava e com ela vinha o pior: a trilha sonora da noite. O hospício ficava do lado da favela. Era funk a noite toda e o dia inteiro. "Lacraia, lacraia, lacraia... Vai, Serginho." Dormir ouvindo aquele lixo cultural. Aos berros.

Eu achava que havia uma porta muito estranha de onde as pessoas não mais voltavam. Entravam por aquela porta e sumiam. Ficava de olho. Há dois dias que a chilena havia entrado ali e tinha sumido. "Eu vou pra Paracambi. Se você não comer vai pro Caju." Eu não agüentava mais ficar no cubículo. Estava ficando com problemas nas articulações. Nenhum louco merece aquele tratamento. Sei que no meu caso era um castigo por ter quebrado a casa toda. Era algo que funcionava como castigo de criança.

Já tive que escrever 200 vezes, detestando o professor de matemática, "eu gosto do professor de matemática". Agora o copiar e o colar do computador acabou com o castigo.

Quando vinha o sol, ia pingando um a um cada funcionário. O hospício bombava de cheio. Estava superlotado. Era domingo, dia de visita. Há horário para visita diária e dia de visita universal que era o domingo. Eu ainda estava com o meu chip, que às vezes me incomodava fisicamente. Eu pensava até quando o meu chip era um derivado do grilo de antes. Eu tinha momentos de lucidez. Eram poucos, mas tinha. As drogas usadas às vezes têm ação sobre o organismo. Mas tem gente que não melhora nem com remédios. Para que serve internação então? Para reunir o entulho humano.

Quando o hospício bombava de cheio era a hora de ficar quieto. Qualquer coisa você poderia ser amarrado à cama. Dentro do cubículo e amarrado era a morte. Muitos alcoólatras viviam amarrados devido a síndrome de abstinência. O grande mal das clínicas é que elas misturam os doentes. Ficam todos internados juntos.
Tinha vontade de comer o bolo da vovó. Mas eu não tinha mais vovó. Muito menos o bolo da vovó. O que havia era uma paçoca de fubá, muito sem gosto. Mas que todo mundo comia a regalar de olhos. A comida de hospício era aquela comida feita para duzentas pessoas por vez. Era Matrix. Não tinha tempero. Era muito ruim mesmo. Mas fica até chato reclamar quando tem tanta gente passando fome e quando tinha gente dentro do hospício que achava aquilo a oitava maravilha do mundo.

"Hoje não teve goiabada."

Eu estava ali há dez dias. Há dez dias que comia mal. Pelo menos ia emagrecer. Tinha saudade da comida de casa. Quando não tinha goiabada não havia nada de que gostava. Mesmo que grudasse nos dentes era boa. Lembrava infância. Lembrava o nordeste. Eu queria comer uma maçã. Há muito tempo não tinha uma maçã. Fruta ali era banana. Eu queria maçã, abacate. Estava seco por uma vitamina de abacate.

Entrou uma barata no cubículo. Tive que matá-la com a mão. Não havia outro instrumento. Os cubículos são feitos para a pessoa que está dentro não ferir ninguém, mas também não se ferir. Para não me ferir não havia nada no cubículo. No começo da internação às vezes se fica amarrado. Cada um tem o tratamento que vai de acordo com a sua periculosidade.

Há muito que não se fazia mais a operação de lobotomia. As práticas de eletrochoque só eram ministradas com sedação. Havia a luta antimanicomial. Mas onde pôr as pessoas que não têm família e são casos perdidos?

Eu mesmo tinha medo do meu futuro. Talvez fosse aquele mesmo, conviver com todo o tipo de gente. Gente sã, gente doida, policial, gari. Não tinha nada contra os garis, principalmente eram muito limpos e sempre querendo fazer uma faxina. Mas o dia inteiro preso, vendo tudo de longe. Era triste. Caiu um toró. Chovia. Ficava mais triste. Eu não me lembrava de um amor. A última vez que fora amado, ela me disse que não me amava. Tinha se apaixonado pela loucura que há em mim. O louco às vezes é muito sedutor. Sentia saudade de ler um bom livro no dia de frio, no de calor também. Sentia vontade de ler um Henry Miller.

Havia muitos morros em volta do hospício. Em vinte anos tudo estaria tomado pela favela. O morro ia comendo o morro, e cada vez mais existia menos lugar verde e mais telhado e casas insalubres. Naquele cubículo era sempre inverno. Fazia sempre frio. Eu num me incomodava, gosto de frio. A gente não tem de tirar a camisa. Nenhum gordo gosta de tirar a camisa. Mostrar as banhas não é o melhor programa para um gordo.

Detesto espelho. Espelho só serve pra mostrar como a gente piora com o tempo. A primeira coisa que quebrei lá em casa foi o espelho. Nem me importei com os treze anos de azar. Depois fui para as bebidas e, tomado de uma loucura inconteste, fui jogando uma a uma as garrafas de whiskie no solo. Ficou um lugar perigoso. Um mar de cacos de vidro. Algumas coisas não quebraram, como o vidro da grande mesa da sala que se mostrou indestrutível. Um enfeite de mesa também ficou inquebrável. Havia coisas que se derretiam só de tocar, que se autodestruíam com um toque e outras que se mantinham impávidas. Meu pai veio e pediu para que eu parasse e eu não parava. Minha sobrinha pequena gritava. Meu irmão gritava. Minha mãe gritava. Minha irmã gritava. A empregada lá de casa gritava.

"Não, isso não!"

Isso eu quebro e vou quebrar mais. Eu quebro. Eu quebro. Eu quebro...

Chegou a polícia e me algemou.

Levaram-me pro Pinel.

- Por que você quebrou?

- Quebrei porque sou feito de caos e quando o caos me convida a desordem eu desordeno tudo. Tudo estava muito calmo. Menos eu. Eu engoli um chip. Eu bebi um chope na rua e botaram um chip dentro do chope. E eu engoli o chip que faz com que eu faça tudo isso, até o que não quero.
Mas eu só podia me ferir com tantos cacos, ainda mais andando descalço pelos cacos.

- Você vai ser removido para a Clínica. Nós estamos superlotados.

- Eu não quero ir pra clínica e nem ficar aqui.

E comecei a quebrar o consultório do médico, até vir um enfermeiro com uma baioneta.

"Por que você não morre?"

Há tanta gente velha aqui.

Um dia ainda sobrevivo pra mostrar todo este jogo sujo.

Fui pra perto do Cristo. Da minha cela dá pra ver o Cristo. Colocaram-me lá para ver se eu morro um pouco, e de vergonha por não crer em Deus. Havia borboletas por todo lado. O hospício era um lugar cheio de flores lindas, mas podre por dentro. O modelo hospício tinha que ser mudado. Mas como a minha família me agüentaria quebrando tudo? Nas horas em que me vem uma pertinência maior vem a pergunta: o que eles poderiam fazer? No dia da crise não se pôde fazer nada, e o que fazer para não entrar em crise?

Você é um caso perdido. Você é um idiota, você é gordo e escroto. Você só fala isso por que eu estou amarrado.

Tudo ficou dourado. O céu dourado. O Cristo dourado. A ambulância dourada. As enfermeiras douradas tocavam-me com suas mãos douradas.

Tudo ficou azul: o bem-te-vi azul, a rosa azul, a caneta bic azul, os trogloditas dos enfermeiros.

Tudo ficou amarelo. Foi quando vi Rimbaud tentando se enforcar com a gravata de Maiakovski e não deixei:

- Pra que isso Rimbaud? Deixa que detestem a gente. Deixa que joguem a gente num pulgueiro. Deixa que a vida entre agora pelos poros. Não se mate irmão. Se você morrer não sei o que será de mim. Penso em você pensando em mim. Rimbaud tudo vai ficar da cor que quer. Aqui não dá pra ver o mar. Mas você vai sair daqui.

Tudo ficou verde da cor dos olhos de meu irmão e da cor do mar. Do mar. Rimbaud ficou feliz e resolveu não se matar.

Tudo ficou Van Gogh: a luz das coisas foi modificada.

Enfim, me deram uns óculos. Mas com os óculos eu só via as pessoas por dentro.

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Rodrigo de Souza Leão nasceu em 1965, no Rio de Janeiro. É autor do livro de poemas Há Flores na Pele e co-editor de Zunái. Participou da antologia Na Virada do Século, Poesia de Invenção no Brasil (Landy, 2002).

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Leia também os poemas do autor.

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