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ARRUFOS

 

Paula Berringer

 

O pior de um ser humano é revelado na maneira como ele aborda o garçom. Meu pai sempre dizia isso, então eu olhava fundo o olho do garçom, que já estava se derretendo todo e pensando o que eu não tenho a dizer. Um café curto, por favor. Algo mais? Talvez, posso olhar o cardápio? Claro.

Você viu aquela moça sozinha, na mesa em frente ao espelho? Hahan.

Ela é bonita, mas não tem companhia, coitada, não é? Hahan.

É, eu acho muito triste, a solidão. Hahan.

Eu pensei em ir até a mesa, perguntar a idade dos olhos dela. Hahan.

Hahan? Eu sabia querida, você não está ouvindo!

Açúcar? Que susto, pensei que fosse o garçom! Desculpe o atraso, gostou da brincadeira do açúcar? Garçom! Senhor? Tire essas xícaras da mesa. Não estão esperando mais ninguém? Está vendo mais alguém aqui?

Eu ainda penso muito nele. Você tem muito tempo livre. O que você vai querer? Um capuccino grande e italiano. Eu quero um sorvete de limão. Sim, senhoras. Faz quarenta anos que ouço você falar desse sujeito e francamente ninguém é tão bom por tanto tempo. Georgina, veja, não é a Amália? Olá, meninas! Vejam o chapéu que comprei! Amália, ninguém usa mais chapéu, onde conseguiu essa antiguidade? Não importa, tem coisas que são eternas. Não, tudo tem prazo de validade: moda, comida, gente. O que deu na Georgina agora, virou filósofa? É que tem pessoas que querem ser a Penélope e ficar quarenta anos esperando o pulha do Ulisses. Do que vocês estão falando? Nada, a Georgina tem lido muita historinha para os netos, hoje em dia os livros para crianças são sofisticados, não é mesmo?

É obvio, não é? Só tem duas pessoas aqui e eu mando limpar a mesa... Esse garçom está de brincadeira comigo. É, eu também devo estar de brincadeira comigo em sair com um cara grosso desses, pensei. Meu pai é mesmo infalível. Melhor quando estava sozinha nessa mesa tomando meu expresso.

Você fez de propósito. Hanhan.

Deixou o aparelho em casa? Hanhan.

Agora aquela jovem está acompanhada. Hanhan.

Posso ver pelo espelho, os olhos cabisbaixos. Hanhan.

É mesmo, a minha neta está lendo um escritor sueco, “Os homens que não amavam as mulheres”, e na capa tem uma menina igual a da família Addams, com um colar de cabecinhas de bonecas. Muitos risos. Amália, isso não é livro de criança. Não? No fundo dá no mesmo, são histórias. Mas pode impressionar sua neta, pode ter coisas violentas. Que eu saiba os livros não vêm com classificação não recomendável para menores de doze anos, como nos filmes. Foi você quem deu o livro? A senhora quer ver o cardápio? Escolhi pela capa. Sim, por favor mocinho.

O melhor de um ser humano não pode ser revelado pela maneira como ele aborda um garçom. Porque é trivial, como beber água. Tem água de diversas fontes, mas é sempre classificada como inodora incolor e insípida. Deveria ser assim, passar despercebido como tantas situações da vida. Quando chama a atenção, tem alguma coisa de errado com essa água, ela deixou de ser inodora incolor e insípida.

Eu poderia comer a moça da mesa do espelho. Hanhan.

Arrufo, apenas arrufos, não é meu amor? É querido, ressentimentos passageiros.



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Paula Berringer é paulista, psicóloga desde 1992 e membro titular da Sociedade Paulista de Psicoterapia Analítica de Grupo, com experiência institucional em hospital psiquiátrico. Abandonou a profissão há dois anos e começou um curso de criação literária na Livraria da Vila e agora na Academia Internacional de Cinema.

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