ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

O PEQUENO CIRCO DA MALDADE


Micheliny Verunschk

 

O galpão inchado de homens na infecção do jogo: gritos, aguardente, mãos cheirando a dinheiro. Parece ter sido ontem tanto barulho, a festa dos machos diante da sorte e do azar. Mas agora, o galpão só um esqueleto só: madeiramento velho, roído de cupim, úmido, com os reumatismos próprios da idade, do abandono. Mas antes, que lixa de dentes poderosos! Como sabia roer homens e limpar muito bem limpas suas ossaturas. Não foi um só ou dois apenas que entregaram esposa ou filha para saldo de dívidas. Também não faltaram os suicidas, os que se penduravam em cordas (quase risível a cara trágica, o grito ridículo solto na corda frouxa), os que tomavam veneno, os que sofriam a terrível enxaqueca do tiro na cabeça. Ocorrências banais, qual das cidades do mundo não as têm?!

A Igreja sim, se preocupava e ia encontrar nas Escrituras uma enorme variedade de conselhos, proibições, ameaças da ira divina. O bispo, em suas visitas pastorais, com aquela voz mansa e uniforme, igual em todos os bispos e padres e homens que se pretendam de Deus, o bispo advertia dos perigos dos jogos de azar, dos vícios que deles decorriam, do coito de malfeitores que a cidade fatalmente se tornaria se insistissem no pecado. Advertia do riso debochado de Satanás, perante a queda dos filhos de Deus. O bispo sempre insistiu nesse ponto em seus sermões, no riso debochado de Satanás. Sempre o sublinhou. Acaso já o teria visto, para descrever com tanta minúcia o esgar da boca, a contração vesga dos olhos, a malícia das sobrancelhas, as rugas ondulantes da testa? Seria por isso que o bispo nunca sorria? Por já ter visto, como quem vê um relógio aberto, essa grotesca deformação do riso? Dizia, mansamente as mais terríveis palavras: "Afastem-se do riso, filhinhos, afastem-se do jogo, das bebidas, das mulheres, de tudo o que é decadência, vício, perdição. Afastem-se da mesa dos escarnecedores... Temei o riso debochado do inimigo, temei o riso de Satanás..."

Mas o galpão permanecia e é bem verdade que naquele local muitos fizeram sua glória, ou relâmpagos dela. E mesmo havendo quem preferisse o prostíbulo, o galpão sempre reinou absoluto na preferência da maioria. E algumas esposas se aliviavam de saber que seus maridos estavam seguros no jogo e havia as que se alegravam de sabê-los perdedores, pois que assim não teriam o que gastar com putas. Muitas rezavam, pois mulheres, em geral, temem as brigas, os ponteios, os jogos dos homens. Temem malfeitores que se comprazem em fazer misérias. Temem os perdedores que voltam para casa bêbados e violentos e que descontam na família a carta perdida, o número errado. Temem o estranho que não bebe, não fuma, não joga, mas que possui uns olhos cediços que convidam ao adultério. As mulheres, em geral, temem. Mas como sabem ceder...

Vendo o galpão hoje, carcomido, tudo parece ter sido ontem. Parece ter sido ontem aquele dia em que ele amanheceu com feitio de circo, a lona grossa e colorida vestindo-lhe as paredes; por dentro, armado um vasto picadeiro. Todos viram, todos perceberam a misteriosa mudança, mas ninguém ousou comentar nada. Todos calaram e guardaram para si a imagem de circo bizarro em que o galpão se transformara naquele dia. Todos fingiram que nada ocorrera. À noite, cada homem temeu ir para lá. Mas como faltar? Por que faltar? Foram todos e embora o barulho e a aguardente e tudo o mais fosse como nas noites anteriores, nada era igual de verdade. Nem os homens eram iguais. Esperavam algo, mas esperavam lá no secreto de cada um. Esperavam o que não sabiam o que seria, mas que certamente não era a chuva forte que desabou na cidade e muito menos a vitória do histórico e renitente perdedor.

Esperavam todos a hora de representar a farsa, até que começou a briga dos dois. Briga feia que ninguém ousou ou quis apartar. Sangue e dois bichos na arena. A assistência encantada. Rugiam os dois. Aplausos. Assobios. Punhos cerrados. Roupas rasgadas. O público satisfeito com a barbárie, não fosse a ausência de garras afiadas e presas fortes, até que ao palco subiram outros homens que, saudados pelos restantes, amarraram os dois peito a peito e na mão de cada um, uma faca. As facas são armas de quem dispensa portador, que homens, homens mesmo, não se escondem atrás de revólveres, portam, eles próprios, a morte nas mãos, sentindo o corpo, o peso, o gosto e a resistência do adversário.

E assim, os dois mataram-se, amarrados como siameses, a facadas. Mataram-se perante as palmas emocionadas de todos que foram ver e participar do espetáculo. Ao final, cada homem pegou seu chapéu e batendo o pó das casacas deixaram o cenário para trás. Todos os bichos da noite se calaram, exceto os gatos. Também a lua silenciou, escondida entre nuvens do fim do mundo. Na manhã seguinte, a lona não estava mais lá.

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Micheliny Verunschk, poeta e historiadora, nasceu em Recife (PE), em 1971. Publicou os livros de poesia Geografia Íntima do Deserto e O Observador e o Nada, ambos de 2003.

Leia também poemas da autora.

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