ZUNÁI - Revista de poesia & debates

CONTO DE NÃO FICÇÃO

 

Maria Ribeiro

 

O exército. Três frentes. A frontal. Que se aqui parece dobrar-se sobre o próprio sentido, logo haverá de avançar. À direita. À esquerda. Visto os óculos e noto que a mancha (cuja existência fora, antes, omitida) encarna carne. Que se aqui parece dobrar-se sobre o próprio sentido, logo haverá de avançar. Traços, cores, texturas, alturas e pesos em quilogramas. O que mais se pode obter da mancha? Que o agrupamento, comandado por um Fraque de batuta, empunha celos, flautas, violinos e castanholas. Há homens e mulheres à direita, à esquerda e diante do maestro.

A mulher de longo vermelho deixa cair o lenço comprido. Chora em falsos agudos. Que lhe recolham o lenço! Mas, de pronto, ela para. Alcança o pano. Sorri e curva o tronco em direção à Dinamarca. Deve bastar-lhes o seguinte: a nórdica Dinamarca é um território setentrional e a suspensão súbita das lágrimas, conjeturemos, costume viking. A belíssima soprano faz, no desespero, arder notas musicais. E tudo aquilo que nos alcança é um enevoado de breves, semifusas e colcheias. Há coisas que parecem formosas quando são, apenas, confusas.

Tendo voltado para casa aquela primeira chorosa, atravessou o exército uma gorda louríssima. Carregava consigo um coque obsceno, pontiagudo. Fez o mesmo que a outra, embora os agudos e os falsetes fossem graves e falsos demais até mesmo para um grave – como a gravidade que habita solene - falsete. Nada ser gorda ou ter os cabelos demasiado amarelos. Mas, ao vê-la chorar em desafinos, desvesti os óculos. E, de pronto, a mancha.

À Playa de Orzan douram-se mamilos ancestrais. Señoras da baixa sociedade de Coruña abandejam seios milenares e oferecem a pele ressequida ao bafo quente bidirecional. Que quando de cima, solar. E, debaixo, obra de claríssimos grãos de areia caudalosa. Tão tarde que amanhece, um pequeno punhado de turistas bêbados conversa em frente à doceria. A morena de trança e o rapaz italiano baixam e levantam os olhos tantas vezes que já nem notam o movimento. L’amour é o nome da boulangerie. L’amour, às vezes engorda. Mas, sempre mata.

Sortie de secours lê-se na placa verde com letras que piscam em amarelo alaranjado. Sentado na poltrona de couro vinho, assisto bicicletas, negros e cães de caça. Todos atravessam as avenues sem despertar indiferença. Nem apreço. Uma garota de cabelos brancos e nariz atrevido entrega-me um folheto: plaisir & sensualité. Um negro (ou seria um cão?) faz suspender nossos olhares (o meu e o dele). A sortie de secours está trancada. E já não estou na poltroneta, porque espanco a saída de emergência.

O mandrião do Hotel Trombose estica-me a chave do quarto. No braço, veias arroxeadas desenham um curioso mapa. Percorro, com o indicador, o labirinto violeta e esbarro, distraído, num arco de madeira e fios de crina. Por suposto, pertence ao Fraque. Tateio os óculos no bolso no paletó, embora escolha esquecê-los. Então, a gorda descorada bradava pelo arco roubado. Pertencia ao marido, o maestro, violinista casual. Já a outra, do vestido vermelho, é apenas um ruído lacrimoso. Ela não pertence à história como não pertencem, julgamos, a deformação, o bulício, o pesar, o mau êxito, a privação. Daí ter convidado a dinamarquesa para o aposento de número 8. Sim, não se tratava de um costume viking: dobrou o tronco em sinal de obediência à rainha Magrete II, quanto civismo! Atravessamos a sortie de secours. Assistimos um negro derramando gotas de leitinho ao sorver ritmado de um cão de caça. Pelos corredores, señoras tropeçam nos mamilos umas das outras, enquanto sacodem a areia das toalhas. A ragazza de trança é uma mocinha de bem. E cede, manhosa, antes de baixar a calcinha transparente.

Mal acomodado na poltrona de couro vinho do meu quarto, carrego o fuzil, calço os óculos e, sem demora, a mancha. Minha bel canto do lenço comprido é uma fotografia fixada na parede. O prato da vitrola gira, abandonado, em perfeitas pirouettes. O letreiro da doceria L’amour projeta um piscar róseo na cortina. De manhã quase ontem, pela fresta da porta trancada, no meio de caixas mal empilhadas, bisbilhotava multidões de guloseimas artesanais, confeitadas com mórbido capricho... A delicadeza lânguida de olhos-de-sogra, pés-de-moleque e melindres em marzipã. O silêncio daquilo que nasce para durar um único ato. Quando na boca. A arma. Explode. A mancha.

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