ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

DEZ CONTOS SECOS

 

 

Marcelo Tápia

 

 

 

IR

 

O automóvel passou. Como o tempo. Não posso vê-lo mais, já não me lembro. Só ficou um pouco do tom pálido, algo da sensação de passagem. A outro lugar. Só ir, a cada centímetro das horas, só mover-me, só agora, automaticamente. Gesto sem fim, o fim à espera. Não há como chegar ao destino, cumpri-lo, por mais que o tempo ande, por mais que eu passe ao largo das pedras. Ou as chute. Uma delas fará o passo seguinte parar de vir. Só vejo a ida, não me lembro onde será o instante, instante do andado: o que estará escrito.

 

 

ASSIM

 

Foi assim que aconteceu. Não adianta mais. Já era. Mas era assim que, no fundo, queria. Um e outro queríamos. Foi quando o fado trouxe-nos o que não pedimos, consciente de nossa oculta vontade. Talvez se atendam os não-pedidos, quando são silêncios nascidos do desejo, fatídico.

 

 

SEU

 

Tome. É seu. Você o fez, é seu por direito. Não me quero de volta.

Fico logo ali à esquerda.

 

 

FIO

 

Creio. Quero crer. Preciso crer. Não creio em outra saída senão crer: sou, não por um mero pensamento, ente abstrato que ecoa no vago, volátil como uma bolha, no limite da inexistência; nem pela fala alada, que soa, alça vôo e some. Enquanto grafo, este rastro negro conduz o fio da meada que me tece: invólucro abarcando o oco, velha bola de ar. 

 

 

COR

 

Ficara só o amarelo. Quase-cena distante, apenas a memória clara. Primeira vez, primeira luz, primeira sensação, a primeira cor. Viva na idéia: amar. Diferente de todas que existem, um elo comigo mesmo, ainda. Verso do mundo, diferente de todas que se vêem todos os dias. Estas se apagam com a idade, fundem-se na diversidade infinda.

 

 

ACONTECE

 

Pena. Mas não adianta chorar o choro derramado. Não foi um acidente, e os não-acidentes acontecem. É o que seria, e pronto: apenas o resultado de uma vida desprovida de prodígios.

 

 

NO FUNDO

 

Enfim tudo está claro. Então é assim. Todos sabiam, menos eu. Não, no fundo eu sabia.

Já não sei mais.

 

 

MORTE NATURAL

 

Aí, então, morreu o Assunto. Morreu por si, sem que houvesse qualquer intenção de matá-lo. Morreu de velhice, por secar-se, definhar, exaurir-se. Em seu lugar nasceram Silêncio e Silêncio, gêmeos, reencarnações do extinto, com chances díspares ofertadas pelo mundo.

 

 

FEIJÃO COM ARROZ

 

Um, dois. Dois gemidos. Um após outro. Desencontrados e últimos, igualados a zero.

 

 

NADA

 

Foi-se, folha levada pelo vento. Era tempo. Passou como quem não veio, uma imagem vaga sem freio, um vulto que a pupila não fixa, liso como o rio, peixe a favor da corrente.

 

Foi-se sem atrito, sem deixar vestígio, nem o vento frio. Passou a folha, passou o vento, o desvario. Era o momento, a falha, é o momento vazio.

 

 

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Marcelo Tápia é poeta, tradutor e editor. Publicou, entre outros, os livros Primitipo (1982), O bagatelista (1985), Rótulo (1990), Livro aberto (1992), Pedra volátil (1996) e o volume de tradução A forja - alguma poesia irlandesa (2003). Dirige a Editora Olavobrás. Vive em São Paulo. E-mail: marcelotapia@superig.com.br.

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