ZUNÁI - Revista de poesia & debates

DE UM PAÍS QUE NINGUÉM CONHECE

 

Marcelo Cajuí

 

O Altruísta

 

 

Já imaginaram se no mundo houvesse o crime de dar dinheiro? Sim. Não?

 

Isso não existe e não pode ser enquadrado como crime, pois não está descrito no código penal brasileiro, portanto não pode gerar um processo.  Comecei a imaginar esta situação durante uma conversa com meu irmão mais novo, sobre uma situação paranoicamente estranha, de alguém querer te assaltar de uma forma inversa.

 

***

 

De acordo com o Código Penal Altruísta de um lugar que ninguém conhece:

           

 

Art. 157 – substituir coisa móvel própria, para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de doá-la, por qualquer meio, reduzindo à impossibilidade de resistência:

 

Pena – reclusão de quatro a dez anos e multa.

 

É importante frisar:

 

§ 2° A pena aumenta-se de um terço até metade:

 

 I - se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma;

 

Um dia, eu estava andando por uma rua qualquer ainda assustado com um trauma que havia sofrido na semana que antecedeu este dia. O medo valia-se ao quinto assalto que fui vítima, este último muito mais traumático, fiquei durante pelo menos quatro horas nas mãos do criminoso.

 

É impressionante como uma vibração atrai a mesma vibração e se concretiza. Em menos de um minuto que rememorei meu terror, acabei caindo – novamente – na mesma situação: um homem me parou bruscamente tomando-me de assalto. Naturalmente, meu coração parou na boca e comecei a tremer. Ele estava armado, em seu olhos trincavam veias nervosas de uso constante de drogas. Naquele momento vi minha morte, como nas cinco outras vezes.

 

Ele me puxou para um beco sujo, colocando a arma em contato com meu abdômen – nesta hora só não evacuei por um mero ato do acaso –, suas frases se resumiam em poucas palavras que variavam entre: “vai mano” e “vai encostando”, eu obedecia, é claro.

 

No beco ele deu uma coronhada na minha nuca enquanto seguia apertando meu braço direito (que ficou marcado), senti uma dor que me doeu mais do que a dor.

 

Enfim paramos, num movimento rápido. Ele puxou a carteira e começou a dizer:

 

— Vai mano, pega esta porra!

 

Eu com cara de vírgula me fiz de dissimulado:

 

— Quê?

 

Ele continuou:

 

— Isso mesmo vai pegando tudo, tudo... toma meu celular também, rápido se não eu atiro.

 

Mais dúvidas:

 

— O que você quer?

 

As ameaças continuaram.

 

— Olha aqui, seu pobre, se você não pegar as minhas coisas vou te encher de balas.

 

Me senti rendido.

 

— Não... eu não posso fazer isto, este dinheiro é seu, eu não posso aceitar...

 

Plaft – um tapa na cara interrompeu minha frase.

 

— Escuta aqui meu irmão (olhem que bonito, pelo jeito o assaltante tinha formação cristã ao me chamar assim), se acha que eu vou acreditar que você não precisa do meu dinheiro tá muito enganado!!! Vai enchendo (gerúndios dominavam o momento) a mão e pegando tudinho que tô te dando.

 

Assustado e mais uma vez cheio de dores:

 

— Mas eu não posso, eu não posso, deixa outra coisa... sei lá, um documento, o RG... sei lá... mas tudo eu não posso pegar.

 

Assaltante:

 

— Seu puto (a prerrogativa mudou)!, vai pegar tudo, sim! Carteira, documentos, celular, esta bolsa aqui ó, tá vendo? Olha o que tem dentro dela, porra! Vai! Rápido!

 

Eu estava chocado e não tinha mais argumentos:

 

— Ah! A bolsa é sacanagem, sinceramente eu não preciso dela, não é justo.

 

Assaltante:

 

— Ok. A bolsa não, eu fico com ela então. Mas você vai pegar este relógio que meu avô me deu . Uma relíquia de família.

 

Eu:

 

— Que absurdo, o seu relógio?... pelo amor de Deus, foi seu avô que deu, não faz isto, por favor, eu te peço, não faz isto comigo.

 

Ainda estava muito indignado com toda a situação, não poderia aceitar aquele assalto, onde já se viu alguém ser tão cruel a ponto de esvaziar todos os pertences pessoais? O pensamento que veio foi reagir aquele ato terrorista – era inadmissível (antes que eu me esqueça, no caso que falei no começo, o assaltante me deu um carro e me ameaçava com uma seringa, dizia ele, estar contaminada com o vírus da AIDS).

 

Duas vezes em menos de um mês, aquilo não poderia estar acontecendo – não comigo –  muito azar pra uma pessoa só, onde estava a polícia?

           

 Já sem esperanças, a fúria subia em minhas veias. Resolvi reagir e lutar. Num momento de distração me enganchei com ele, lutamos como verdadeiros guerreiros, a cena era pitoresca: dois homens com os rostos e corpos colados, com os braços esticados pra cima, ambos tentando dominar a arma, nos arrastamos pelo chão – estraguei minha camisa nova –, eu mordi  o nariz dele, este ato foi seguido de um grito.

 

Ele falava rangendo os dentes:

 

— Eu vou te matar filho da puta, eu vou te matar... pega tudo!

 

Eu respondia:

 

— Não pego não, as coisas são suas e não minhas.

 

Este diálogo perdurou por mais uns minutos até que consegui tomar a arma. Daí pra frente o semblante do criminoso mudou. Como é bom se vingar! O homem se encolheu cobrindo o rosto, estava crente que eu atiraria.

 

— Não atira não tio (tio?, não era irmão?), eu sou rapaz trabalhador, é que tem sobrado muito dinheiro pra mim, eu tenho que fazer isto porque sou obrigado, sou solteiro e não tenho ninguém pra criar, por isto escolhi você, percebi que estava precisando mais do que eu.

 

É lógico que eu não deixaria barato:

 

— Agora diz pra não atirar não é mesmo? Cadê sua valentia? Não era você que queria me passar tudo “meu irmão”? Cadê aquele cara?

 

Assaltante:

            - Não é isso... eu já te expliquei, por favor, me ajuda, estou gastando muito dinheiro, preciso passar isto pra alguém. Me ajuda, pega só meu cheque pelo menos.

 

Eu ainda estava perplexo, o cara além de estar na pior ainda tentava me convencer com uma cena dramática.

 

— Agora está pedindo? Não tenho nada a ver com isso. Agora é tu que vai pegar tudo: carteira, cheque, relógio, tênis até o celular. Vai, safado! Pega tudo! Quero ver se tu é macho mesmo. Com relutância, o assaltante em prantos recolhia minhas coisas, meu sorriso fazia pontas nas orelhas.

 

— Não era isso que você queria fazer comigo, seu pilantra?

 

Vitória!

 

Quantas vezes havia sonhado com este dia. Tudo corria bem, até um menino me ver apontando a arma para o ladrão e entregando a carteira, só deu tempo de ouvir o grito que ele proferiu para o resto da rua “assalto! assalto!”.

 

Fugir seria impossível. Explicar que focinho de porco não era tomada, levaria tempo suficiente para me lincharem. Nada tinha ao meu favor, eu já estava “liso”, sem carteira, sem celular, sem tênis esem relógio, foi quando ouvi outro grito, desta vez do assaltante “socorro! socorro!”, e logo após os respectivos gritos eu não sabia para que lado olhava.

 

 

Abaixei a arma quando dois policiais apareceram do além. Tentei falar que eu apenas tinha reagido e dominado o meliante que estava no canto, foi inútil. Me jogaram no chão molhado, encostei minha boca em águas nada cheirosas, uma mistura de mijo com o líquido que saía das latas do lixo, colocaram meus braços para trás, e me algemaram.

 

 

Na delegacia – inchado pelo murros e pontapés levados dentro e fora do camburão – fui interrogado e jogado no xadrez. Nada do que eu disse foi creditado.

 

“Não é aqui que todo mundo é inocente?” – disse um policial, com humor previsível e horrivelmente recheado de clichês antigos.

 

Não consegui provar nada. Fui enquadrado no artigo 157, segundo Parágrafo, Inciso I.

 

 

Lembro que assinei outras coisas que eu não tinha feito.

 

Estou preso há cinco anos vinte e três dias e oito horas. Hélio (meu advogado) disse que saio no máximo em dois anos. Sou réu primário, aliás, era.

 

Aqui dentro conheci uma turma da pesada que me ajuda a fazer doações em dinheiro para diversas entidades. Tentam negar, mas o pessoal coage para que todos fiquem com o dinheiro. Formamos uma quadrilha que age principalmente em hospitais e centros de reabilitação. Chamamos nosso movimento (pois é, acabei me envolvendo) de “quadrilha altruísta”. Comandamos todo o esquema de dentro e de fora do presídio, inclusive criamos um sistema infalível que diminuiu em zero as tentativas de fuga e ameaças de motim. Uma denominação que nos deram também foi “adoráveis vagabundos”, mas esta é uma história de outra pessoa... Estamos cada dia mais organizados, acredito que, no mês que vem, vamos expandir nossas ramificações para asilos e orfanatos.

 

Ervas daninhas crescem que é uma beleza em terrenos hostis, assim cresci aqui.

 

Não me preocupo mais em sair. É ótimo imaginar que não terei mais medo ao andar pelas ruas novamente, por vários motivos. Um deles é que não tenho mais nada, tudo que ganho eu passo adiante criminalmente.

 

Na atual conjuntura posso dizer que o crime vicia, para quem pratica ou para quem sofre com ele, sei lá, parece um ciclo†

*

 

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