ZUNÁI - Revista de poesia & debates

PIQUENIQUE

 

Luiz Bras

 

      Ariel não volta pra casa há seis dias. Quando não está na praça ou no supermercado, ela está no cinema ou no metrô. Ariel sabe que o melhor lugar pra se esconder é a multidão. Quanto mais gente, melhor. Ela sabe que os Visitantes habitam seu corpo principalmente quando ela está sozinha. De onde eles vêm? Do fundo da terra, talvez. Entrando pela sola dos pés. Ou de cima, do céu. Mergulhando direto no cérebro. Ou pelo ar, invadindo as vias respiratórias. Não importa. O fato é que são ruins de mira. Quando Ariel está cercada de gente, os Visitantes custam a acertar. Funciona exatamente como na savana africana, com os gnus e a zebras. O animal solitário é sempre a presa mais fácil. Dois anos atrás, ao ser possuída pela primeira vez, Ariel pensou que tinha sido Deus. Ou um querubim. Ao acordar, não se lembrava de nada. Viu na tevê que milhões de pessoas no mundo todo haviam passado pela mesma experiência. Ariel ficou em estado de graça. Deus finalmente se manifestara. Novas possessões ocorreram e Ariel mudou de idéia: só podia ser o diabo. Ao acordar, seu corpo e sua cabeça doíam bastante. As pernas e as costas estavam cheias de vergões e manchas. Ariel entrou em pânico. A queimação na vagina e no ânus indicava que participara de uma longa sessão de sexo. Ela encontrou no computador um arquivo de vídeo: o registro de parte da orgia. Dezenas de pessoas igualmente possuídas haviam passado pela sua casa. Hoje Ariel suspeita que os Visitantes não são divindades. Não no sentido religioso. Parecem mais pesquisadores. Entram sem avisar, o hospedeiro perde a consciência e passa a fazer coisas esquisitas. Um policial dá um tiro na própria testa e fica examinando o buraquinho com o indicador. Uma veterinária tenta enfiar um gato inteiro na boca. Uma professora de inglês urina num copo e bebe. Doze adolescentes dão as mãos e saltam do vigésimo andar de um hotel de luxo. Motoristas brincam de atirar ônibus contra caminhões. Um garçom enfia um canudinho na narina e tenta derramar cerveja dentro. Curiosamente apenas as pessoas são visitadas. Os animais até hoje não manifestaram um comportamento estranho. Na tevê falam em invasão extraterrestre. Ariel não é tão melodramática. Abdução, sim. Extraterrestres, sim. Invasão, não. Pra ela são apenas pesquisadores de outro mundo. Ou crianças. Faz sentido. Crianças pequenas brincando com os insetos da relva durante um piquenique. Daqui a pouco os pais vão chamar, a família entrará no carro e a tortura terá fim. Além de evitar ficar sozinha, Ariel também gosta de encher a cara. Conhaque, vinho, uísque, qualquer coisa. Certa vez os Visitantes entraram nela, bêbada, e na mesma hora, graças ao efeito do álcool, ela entrou nos Visitantes. Foi muito doido. Ariel sentiu cócegas e agulhadas. Seu espírito se espalhou no interior de algo que parecia um iceberg. Não um iceberg, uma lagoa. Não uma lagoa, uma nuvem. Ariel foi ao mesmo tempo uma substância sólida, líquida e gasosa. Uma substância gargalhante. Borbulhante. De grandes dimensões. Às vezes meio esponjosa. Com sabor de clorofila. Ariel manipulou sem piedade essa substância. Fez dela gato-sapato. Beliscou onde ardia, arranhou onde doía, chutou, mordeu. Quanto mais as criaturas resistiam mais apanhavam. Doideira total. Dias depois, ao voltar a si, Ariel teve a nítida impressão de ter causado um belo tumulto no piquenique. Pena que não voltou a acontecer. Foi divertido. Hoje nem os porres ajudam muito. O melhor mesmo é sumir na multidão. Estádio de futebol, aeroporto, qualquer lugar é melhor do que a solidão de casa. Sumir e esperar. Torcer pra que os comes e bebes tenham finalmente acabado. Rezar pra que a família já esteja levantando acampamento e os minutos do outro mundo não durem séculos no nosso.

 

*

 

Luiz Bras nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. É doutor em Letras pela USP e sempre morou no terceiro planeta do sistema solar. É de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Na infância ouvia vozes misteriosas que lhe contavam histórias secretas. Adora filmes de animação, histórias em quadrinhos e gatos. Com os felinos aprendeu a acreditar em telepatia e universos paralelos. Já publicou diversos livros, entre eles a coletânea de contos Paraíso líquido, a coletânea de crônicas Muitas peles, os romances juvenis Sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis A menina vermelha, A última guerra e Dias incríveis. Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue Cobra Norato: http://luizbras.wordpress.com.

 

 

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2012 ]