ZUNÁI - Revista de poesia & debates

CONTRA A CORRENTE

 

Luiz Bras

 

      Não costuma acontecer com freqüência.

      Não costuma acontecer com todo mundo.

      Não é algo sobre o qual haja grandes certezas.

      Quem presenciou o fenômeno, infelizmente não viveu pra contar.

      Começa com um corte na realidade.

      Um intervalo mínimo.

      Um intervalo realmente muito pequeno.

      Como o intervalo que há entre a primavera e o verão.

      Como o intervalo que há entre a página dezenove e a vinte.

      Como o intervalo que há entre a cara e a coroa, o chão e a sombra.

      Acontece sempre no breve intervalo que há entre o domingo e a segunda-feira.

      Nessa hora o tempo congela e outro dia surge: o oitavo dia da semana.

      Ninguém nota, ninguém percebe nada de anormal. Afinal estão todos paralisados no tempo.

      Ninguém, exceto uma pessoa escolhida ao acaso.

      Sempre em Cobra Norato.

      Quem escolhe? Por que sempre em Cobra Norato?

      Ninguém sabe.

      No intervalo entre o domingo e a segunda, essa pessoa acorda. Apenas ela. O resto do mundo continua no limbo.

      Essa pessoa acorda e, talvez por instinto, talvez por mágica, ela sabe que está sozinha, ela sabe que precisa fugir.

      Como ela sabe disso? Ninguém sabe, nem ela.

      Ela abre os olhos e ouve dentro da sua mente: corre.

      Então ela simplesmente sai correndo.

      Por puro impulso.

      Geralmente ela corre avenida acima, não avenida abaixo.

      Geralmente ela corre na direção da torre.

      Corre sem refletir, sem raciocinar. Simplesmente continua seguindo contra a corrente, feito o salmão antes de desovar.

      Atrás dessa pessoa vão todas as sombras da cidade.

      Todas mesmo, da menor à maior.

      Não são sombras muito rápidas, não são sombras muito inteligentes, mas são bastante determinadas.

      Não têm consciência, também agem por instinto. Ou por mágica.

      Sabem apenas que têm que alcançar o fugitivo antes que ele chegue à torre.

      Antes que por puro descuido, por puro impulso, ele liberte o que tem na torre.

      O que tem na torre?

      É melhor não perguntar.

      É algo que, para a nossa sorte, está lá há séculos, encarcerado entre o domingo e a segunda-feira, entre a cara e a coroa, entre o chão e a sombra, entre a página dezenove e a vinte.

       

      É algo que pertence ao oitavo dia da semana.

       

      Não costuma acontecer com freqüência.

      Não costuma acontecer com todo mundo.

      Não é algo sobre o qual haja grandes certezas.

      Quem presenciou o fenômeno, infelizmente não viveu para contar.

 

*

 

Luiz Bras nasceu em 1968, em Cobra Norato, MS. É doutor em Letras pela USP e sempre morou no terceiro planeta do sistema solar. É de leão e, no horóscopo chinês, cavalo. Na infância ouvia vozes misteriosas que lhe contavam histórias secretas. Adora filmes de animação, histórias em quadrinhos e gatos. Com os felinos aprendeu a acreditar em telepatia e universos paralelos. Já publicou diversos livros, entre eles a coletânea de contos Paraíso líquido, a coletânea de crônicas Muitas peles, os romances juvenis Sonho, sombras e super-heróis e Babel Hotel e, em parceria com Tereza Yamashita, os infantis A menina vermelha, A última guerra e Dias incríveis. Mantém uma página mensal no jornal Rascunho, de Curitiba, intitulada Ruído Branco. Também mantém o blogue Cobra Norato: http://luizbras.wordpress.com.

 

 

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2012 ]