ZUNÁI - Revista de poesia & debates

DESENCANTO

 

Ludmila Rodrigues

 

Morreu de loucura. Aquilo calou fundo em mim. Eu bem sabia dos seus distúrbios mentais, sei, sei que se agravaram muito desde minha última visita. Soube da piora ascendente através de gente calada que fala muito, comenta tudo sem querer dizer nada. Mas não achei que ele fosse morrer, claro, a gente nunca espera isso do outro: a morte. A gente diz, a cada dia, com todas as faces do corpo, que espera vida daquele ser, não sei, que é natural que ele esteja ali sempre, um dia após o outro, como o jasmineiro do quintal. Mas pessoas não são jasmins, enlouquecem e também morrem antes de.

Antes de dizer tudo o que tinha de ser dito, que era tanta coisa, tanta, ele morreu. Tive de ir até lá, fiquei olhando o corpo dele, tive um pouco de nojo, mas pensei que é como ter nojo de tocar um pano de chão que tem nele a sujeira cotidiana do próprio chão em que se senta, deita e esfrega, então, abracei o corpo gelado, falei algumas bobagens, resmunguei alguma sobra de sentimento viscoso, bobagens, sim, nada foi ouvido por ele que estava lá seco, parado, morto de loucura. O rosto era o mesmo rosto rebelde que ficara dentro da minha cabeça por muito tempo, me chocou vê-lo um pouco envelhecido, mas a cara rebelde era a mesma... A loucura jovem e branca também estava lá, e bem no fundo dos olhos quase trincados havia a mocidade que, um dia, espalhou-se toda em mim, quebrando portas e janelas e tudo o que me era vidro.

E eu lembrei da infância, da castanheira, das noites de escoteiro no quintal, da respiração ofegante escondendo andorinha nas mãos, da juventude, dos bares sujos e das garrafas de cerveja, do dedo indicador de anjo mergulhado no Dry Martini, rodopiando a azeitona que era peixe verde.

Saí de lá e fiquei algum tempo olhando bem de frente o cubículo ainda em cimento, uma parte quadrada pintada de branco, inacabada, o portão descascado e cheio de ferrugem, a rua escura. É enlouquecedor o zumbido do silêncio.

Antes do choro desalmado no meio da cama dentro na noite nua, esmigalhei um último cigarro contra a parede, e os pedacinhos de fogo se estilhaçando no ar lembraram miudezas de estrelinhas muito quentes na crueza da noite.

 

*

 

retornar <<<

[ ZUNÁI- 2003 - 2012 ]