ZUNÁI - Revista de poesia & debates

PERDA TOTAL

 

Jorge Ribeiro

 

Bem que podias ter ficado em casa naquela manhã. Tua pequena queria tanto uma trança. Bem que podias ter inventado um doce demorado na panela de ferro. Que levasse uma vida para ficar pronto. Mas não. Tu foste. Apressada. Nem a bolsa levaste. Para que haverias de carregar a bolsa naquela manhã? Pra quê? Tu ias com teu marido no carro. Entretanto, na manhã de chuva quem vai pode parar de ir. De voltar. Tu e teu marido surpreendidos pela enxurrada no asfalto. Espelho d’água embaixo dos pneus. O carro derrapou e bateu no poste. Teus dois filhos esperam por ti. A menor quer mamar. Que é de teu leite? Dizem que estava escorrendo no asfalto. Quem foi que disse? Quem foi que viu? O maior está gritando que quer o pai. Que ele falou que não ia demorar. Pai. Eu quero meu pai. Quem foi que assistiu? Quem contou? Tu que te achavas tão bela. Tão superior. Tão exata. Tão cheia de verdades. Um pacote pálido jogado no asfalto. Tua saia azul levantada para os olhares. Passou um moço. Benzeu-se, mas não conseguiu desviar os olhos de tuas belas coxas. Teus seios bonitos e dentes. Cabelos tão iguais e tão de encanto. Tu conheceste teu marido numa daquelas tardes próprias para o amor. Assim foi. Ele vinha de outra cidade para ser gerente de uma empresa. Tu estavas no final do curso de Letras e já davas aulas em duas escolas. Tão jovens. Namoraste e casaste. Cheia de amigas e de amigos. Casa própria. Carro bom. Sítio. Dizem que vocês brigavam muito na hora do acidente. Teu marido se distraiu. Como é que souberam da discussão, se tu morreste na hora, teu marido chegou em coma no hospital e morreu pouco depois? Uns dizem que já saíram de casa brigando. Outros, que a briga já tinha começado anteontem. Essa gente sabe mesmo de tudo, até antes de acontecer. Disseram que ele tinha muito ciúme de ti. Não, não, tu é que tinhas ciúmes dele. Morrias. Morreste. Bem que tu podias ter ficado em casa naquela manhã. Dizem que a pequena grudou em teu pescoço. Estava adivinhando. Mas quem foi que viu a pequena agarrada a teu pescoço? Dizem mais. Só podiam morrer juntos. Amavam-se demais. Bobagem. Morreram juntos porque tu não largavas dele nem pra tomar um café. Nem pra fumar um cigarro. Benzinho, ta demorando tanto no banho. O que está acontecendo? Amor, que tanto você fica nesse computador? Algum caso virtual, bem? Morzinho, não aguento mais o jeito que a faxineira te olha. Vou pedir pra ela não vir mais. Querido, tentei ligar pra você a manhã todinha e só dava caixa postal. Ando tão cismada com você. Mas. Teu moço era bom. Era bonito. As meninas olhavam pra ele. As mulheres olhavam pra ele. Solteiras e casadas olhavam. Ele tinha um jeito. Baixava os olhos. Meio triste. Sempre. Seu olhar era só teu e dos filhos. O defeito dele era passar pelo bilhar, beber cerveja e jogar com os amigos. Enquanto jogava, o celular tocava dez, quinze vezes. Tu, sempre tu. Vigiando. Vinhas buscá-lo muitas vezes. Trazias as crianças. Comias pastel com ciúme e pimenta suave. Tomavas um copo de refrigerante. Se tu soubesses, mulher. Se tu soubesses que aquela falsa loira, sentada no fundo do bar faria até bobagem pra ficar com teu marido. Tu nem viste. Ela namorou a cidade inteira e depois aceitou Jesus. Mas não ficava sem cerveja e sem cigarro. Deixou o pastor falando sozinho. Voltou pro bar e os cavalos de sua paixão galopavam sem freios. Ela jurou por Deus que teu marido ia ser dela a vista ou a prazo. Ela foi à macumba. Boca de sapo cheia de terra de cemitério, ela costurou e jogou em teu quintal. Fez despacho na encruzilhada. Acendeu doze velas vermelhas. Tirou foto, sem que teu moço percebesse. Colocou na xícara com açúcar. De cabeça para baixo. A macumbeira falou que seria tão bom se ela conseguisse um pentelho dele. Por no coador e coar café bem forte. Sem açúcar. Se roubasse uma cueca dele, então. Infalível. Enchia de nós. Amarrava o coração dele. Ele vinha. Bastava ficar sete dias renegando prazeres. Tudo o que é bom. Cigarro. Cerveja. Sexo. Dormir no chão. Acordar de madrugada. Vela verde pra São Jorge. Sete dias sem nenhum gozo e ele viria lamber seus pés. Comer na sua mão. A loira fez. Desfez. Mas. O tempo ganhou o jogo.  Era ela a loira de óculos escuros que chorava no velório? Ou era uma professora amiga da escola? O povo viu. O povo sempre vê. Aquelas lágrimas. Eram de dor? Frustração? Tudo acabou no poste duro. Nada disso pudeste ver. Também não viste o moço chique que chegou de Ferrari vemelha. Roupa de rei. Estacionou o carro e entrou no velório. No teu caixão pôs um cravo vermelho. No caixão de teu marido, um branco. Ficou mais de quarenta minutos, olhando para os corpos. Parecia rezar. Chorava? Debruçou-se sobre o corpo de teu marido e rezou um silêncio comprido. Teu marido morto. Aquela expressão meio triste. A mesma da vida inteira.  Eram quatro horas da tarde e o elegante moço enxugou choro teimoso. Saiu com decisão. Entrou no carro e sumiu. Fez os pneus cantarem, antes de desaparecer na tarde de chuva fina. Tuas crianças, mulher, estão lá. Dias e noites. Prantos. Papai viajou. Mamãe viajou. O maior pergunta. Pra onde? Por que eu não fui? Por que não me levou? As almas andam esticadas de saudades. Arrepios no peito. Línguas grossas no céu da boca. Dias não amanhecem. Noites não anoitecem. A avó materna faz promessas. Manda dizer missas. A outra avó balança as crianças. Reza Pai Nosso. Ave Maria. Trazei de volta nossas esperanças. O pai de teu marido passou dia desses lá no bilhar. Veio pagar uma continha que teu moço deixou. Ele que nunca foi de beber, tomou umas cervejas muito devagar e falou. Dos começos e dos fins. Falou que o filho sempre foi bonitão. Desde bebê. Até a hora da morte. Quando pequeno, todo mundo queria beijar. Pegar no colo. As tias sempre querendo dar banho, passar talco. Ele sempre bom. Filhão. Filhote. Tudo ele dizia pra mim. A primeira namorada. Os amigos. Os segredos de homens. As putas. O primeiro porre. Ele com aquela presença bonitona dele. Mas não sei. Eu sempre via uma ponta de tristeza no olhar dele. Ele não gostava muito, quando eu falava nisso. Teve um grande amigo, esse não saía lá de casa. Tocavam violão. Nunca saíram do mi lá ré. Gostavam mesmo é de jogar futebol de salão, na quadra da escola. Aquela amizade dava gosto de ver. Viajavam junto com o time. Iam e voltavam sempre rindo. Gostavam dos mesmos filmes. Das mesmas músicas. Iam. Voltavam. Se um levantava a voz, o outro baixava. Desconversava. Quando meu menino arranjou namoradinha, pensei que a amizade fosse perder aquele viço, aquele amor de irmão. Que nada. Ficou mais forte. Um parece que gostava de ver o outro feliz. Mas. Meu moleque foi ficando caladão. Meio sem sossego. Jeito perdido. E não era aquela ponta de tristeza que ele tinha nos olhos desde o berço. Não. Era alguma preocupação nova. Eu via. Eu conhecia muito bem o jeitão dele. Eu perguntava, ele falava que era nada. Eu dizia você nunca mentiu pra mim, ele dizia nem vou mentir. Então me conta o que acontece. Nada, pai. Nada. Então, o quê? Eu sabia que cedo ou tarde ele ia contar. Se abrir. E ele contou. Sabe pai, meu maior amigo, o Du? É por causa dele essa preocupação. Essa falta de sossego. Uma noite dessas, ele tomou um pouco a mais e disse que tinha que me contar um segredo que roia ele por dentro. Que acabava com sua paz. Ele disse você é meu melhor amigo, posso falar o que eu quiser? Eu disse pode. Então, bicho, o que sinto por você não é só amizade. É amor. Sinto atração por você. Quero beijar você. Abraçar. Pai, tive tontura naquela hora. Porra, que merda é essa, Du? Não é merda, bicho, é tesão dos fortes. Pai, fui dormir com dor de cabeça. Acordei falando pra mim que era mentira o que eu tinha escutado. Encontrei com ele e ele insistia naquela conversa. Você é meu melhor amigo, Edu, é assim que eu quero que seja. Então, ele começou a chorar e disse que assim não ia dar pra ser. Que nossa amizade terminava ali. Pronto, pai, contei. Perdi um amigo, o melhor de todos. Você não reparou que ele parou de vir aqui em casa? Eu não esperava uma dessas. Fiquei sem rumo. Não sei o que fazer, pai, o que pensar. Eu disse pro meu filho que o tempo curava e que na vida a gente vai aprendendo de tudo. Foi o que aconteceu. O amigo dele acabou mudando pra São Paulo e meu rapaz voltou ao que era. Nunca mais teve um grande amigo. Só colegas, aqui e ali. Estudou, casou, me deu netos, mas morreu tão cedo. Tão feliz com minha nora, os dois tinham que morrer juntos e deixar dois órfãos? Tinham? Eu bem que estranhava aquela tristeza no olhar dele. Ele não gostava de falar nela. Aquilo parecia aviso. Nesse ponto da conversa, mulher, teu sogro chorou, pagou a conta e foi embora. Se tu estivesses por lá, terias consolado aquela tristeza. Teu sogro a quem tu tanto amavas. Tu e teu marido. Bem que vocês podiam ter ficado em casa naquela manhã de chuva forte. Tu deixaste horta e jardim. Plantas no quintal. Teu sogro continua a regar todos os dias, mas elas não agem nem reagem. As avencas foram as primeiras a secar como se dissessem não. A pitangueira está com um verde amarelado. Dálias murchas na sombra do abacateiro sombrio. Manacá sem perfume. Hortênsias secas. Grama desbotada.

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