ZUNÁI - Revista de poesia & debates

ENQUANTO MEU PAI NÃO MORRE

 

Hudson Santos

 

Era o dia do nascimento de Kafka e o dia da morte de Roberto Piva e fazia tempo que eu não via cachorro morto nem gato atropelado. Tudo fazia tempo. Eu levava um soco no estômago por segundo e queria vomitar qualquer coisa podre que eu segurava de raiva. Poderia colocar o dedo na garganta e me aliviar, mas sou um homem mau, deixei para ver o que acontecia. Dava voltas a serpente plantada no ventre. Acho que seu veneno se misturava com minha saliva e fazia tempo que não via cadáver fresco nem osso roído na rua.

Acho que foi numa segunda-feira ou num sábado quando meus parentes começaram a levar as coisas da casa embora, em meu quarto não haviam tocado em nada ainda, mas sabia que seria questão de tempo. Para sentir-me real olhava para a rachadura no teto: era um rio lento, lento demais, mas eu via seu fluir, deitado na cama. Não via mais nada, não saía de casa. Passava os dias deitado olhando o teto e a rachadura e fazia tempo que não via ninguém empalado em gravura medieval ou conhecido gelado em necrotério.

Meu pai estava mal e fazia tempo que não via cadáver da família. Estava só carcaça, mas não entregava os pontos. Pirraça de moribundo. Olhos sem quem. Na cama, insistência vazia dele, eco. Meu irmão, inconsolável brada incessante: cretino, cretino, não morre. É capaz de enterrar todos nós. Eu não ligo, apenas olho a rachadura porque faz tempo que não vejo gente pulando de prédio em incêndio nem voando para o chão de viaduto.

Por sorte eu comia pouco, pois levaram a geladeira e o fogão, levaram as panelas e os talheres, levaram toalhas e nossos mantimentos para o mês: uma prima disse que agora era com ela, ela nos traria as refeições e trazia mesmo, embora eu pouco me importasse porque fazia tempo que eu não batia a cabeça na parede nem via morcego pendurado em vaca.

Meu irmão às vezes aparece na porta e me mostra o punho:  

— Canalha, não chora o próprio pai? Por que não chora desgraçado?

Acho que o velho morreu:

— Agora estamos sós, eu disse.

— Você é mesmo uma ovelha negra. Que filho detestável! Meu irmão esbugalhava os olhos e colocava tristeza na voz, um calhorda.

Depois simplesmente saía, sujeito mais louco, nem esperou para eu perguntar se o velho havia falecido. A rachadura ia do centro do teto até o início da parede, reparei que nos anos que vivi ali, ela desceu um pouco mais, o tempo não passa em vão.  

Meu irmão apareceu novamente na porta:

— Esse é meu irmão, me envergonha, mas é meu irmão. Me dá um abraço seu paquiderme.

— Abraço não! pode até ficar aí, mas abraço não! me defendi como pude pensando que fazia tempo que não via borboleta espetada em alfinete nem enforcado balançando em lustre.

— É nessa semana que o crápula abotoa o paletó. Tem que ser. Não é?

— Pra mim dá na mesma!

— Soube que fuma escondido, uma beleza.

— Nicotina não o mata, o velho tem natureza de rato, sobrevive ao veneno.

— Anda, bate três vezes na madeira, não diga mais isso. Faz sinal da cruz. É a Ana quem está traficando para ele? Será? Só pode ser. Temos que dar uns trocados para ela, para não faltar. Qualquer ajuda é bem vinda. Ana é um amor, você não acha?

— Dá a tv para ela que talvez não falte cigarro.

— A tv não, é minha, emprestei dinheiro para o velho, metade de uma prestação, tem dinheiro meu nela. Esquece. Meu irmão vai até a sala para tirar alguma dúvida e volta. A tv, ladrão, cadê a tv? Desalmado, roubando a casa enquanto o velho agoniza? Isso não se faz, o sujeito tem que morrer primeiro. Cadê o aquário? Porque a terra não comeu meus olhos antes de ver isso? O velho tem que morrer primeiro!

- Faz tempo que as coisas estão sumindo, você é um desatento. Não levei nada. Tenho vergonha na cara. Até desconfiei de você. Mas eu pensei, meu irmão não faria isso. Ele sabe que o certo é esperar os pés se juntarem. Apodrecer. Destroçar, você sabe. Ter sabor aos corvos.

— Precisamos deixar as portas trancadas.

— Não adianta, os outros também têm chaves.

— Mudar a fechadura então!

— Impossível, os outros filhos também têm o direito de verem o decrépito penar.

— Meu deus, não vai sobrar nada para nós. A casa ficará vazia antes do velho morrer.

— O Pedro pensou em asfixiá-lo com travesseiro. Eutanásia, coitado está tão doente.

 

Mas é bem possível que ele sobreviva e ainda passe sermão: Travesseiro comigo não adianta. Me arruma cigarro parricida de merda. É mesmo uma vergonha. Comigo é só no tiro. E aponta o polegar e o indicador para a têmpora, sorrindo.

 

— Travesseiro, mas que calhorda delicado, vou falar umas boas para nosso mano, pois fique sabendo que com papai é só no machado. É preciso decapitá-lo e jogar a cabeça pela janela. Vendemos os órgãos depois. Será que os rins dele valem alguma coisa? A pele os japoneses gostam em abajur.

 

— Acho que está tudo podre. A pele talvez valha alguma coisa, bem pouco, o trabalho de encontrar comprador é que talvez não valha. E ainda ter que passar a perna com mercadoria estragada. Talvez nem necrófilo compre-a para limpar a bunda. Mas, têm louco e mórbido para tudo.

— O que acha de uma prostituta? o coração do velho está fraco, o pinto levanta, o coração entra em pane com esse fluxo de sangue a mais e o enterramos. Um sonho!

— Cala boca desmiolado. Isso é um insulto (leva mão ao peito, irado). Aquela carcaça não vai trair mamãe, ou pelo menos o fantasma suicidado dela. Prefiro cortar-lhe o pinto. Desgraça. É essa idéia que você tem de família? Não tem princípios, essa é a verdade. É um abominável. E onde diabos estão os canibais quando precisamos deles? Me fala, onde estão? Vi um que montou um site e um monte de malucos se ofereceram, ele preparava bons pratos, nada de carne crua. Um cara civilizado. Mas cadê ele? Cadê o site? A verdade é que não comeria o velho, canibal gosta de carne humana, de vivos, têm ética, não são de rapina, e o velho é só assombração.

— Que vida miserável. Talvez hoje levem o sofá e os armários. E aquele monte de remédios no banheiro? Não sei para que são, mas quero para mim, sou muito hipocondríaco. Posso ter um troço de repente. Preciso garantir o futuro. 

— Se as coisas continuarem assim vamos herdar apenas a solidão da casa, seus silêncios, suas ausências, uma maravilha, não acha?

— Queria ter nascido em outra família. Imagina só: O velho acaba de baixar na necrópole. Adeus papai, descanse em paz.  Todos se dão falsos abraços, fingindo que vão para suas casas, mas na cabeça de todos é só a casa do velho. O problema é quem chega antes. Alguém mais astucioso leva até caminhão de mudança. E começam os sopapos. A cadeira é minha e mordida no tornozelo para largar. Larga essa escova de dentes, vi antes, o velho não escovava a dentadura, é minha, e puxam-se os cabelos. Quem chegar perto das panelas leva tiro, e leva mesmo. E mais troca de socos, cotoveladas, pontapés, sopapos, joelhadas, cabeçadas, cuspidas, tabefes. E troca de palavrões, como trocaríamos palavrões. No fim quebraríamos mais coisas do que levaríamos. Uma família.

Sorrimos comovidos. Fumamos. Até que cravamos olhos no pescoço, um do outro. Mas as mãos, as mãos permaneceram inertes. Sempre fomos uns Caim & Abel, platônicos & covardes.

— Vá ver se ele morreu! eu disse, meu irmão obedeceu. Olhei novamente o rio imóvel no teto: fazia tempo que eu não via garganta degolada nem mão decepada em boca de cachorro. Ouvi ruídos de objetos sendo arrastados, acho que meu irmão estava certo: estavam levando o sofá, logo assaltariam meu quarto, tinha algum tempo ainda, em todo caso.

 

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