ZUNÁI - Revista de poesia & debates

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(UM RETRATO) (DESLUMBRE) (A ROSA)

 

Claudio Brites

 

Há no corte um deslizar. Uma permissão. Um vidro. Há no corte uma posse sobre o mundo, sobre o devaneio alheio. Há no corte, no corte profundo, corte indulgente, uma sobreposição de vozes, um cheiro de dia, de violino. Há no corte acordes agudos de violino. Um solo imperial. Quando ela se deitou sobre a cama as pernas trançadas roçavam o tecido barato, as pernas cruzadas falando italiano. Seus olhos eram um coral de milhares de línguas cantando um tango. Não havia naquela composição clichê nada mais adornado que ela. As paredes do quarto, pequeno, eram uma mistura de mau-gosto com mofo e arte pop. Ela dizia, falava, contava e eu ali sem ouvir um nada, uma mentirinha, idealismo. Nada. Debruçado sobre ela eu beijava cada linha de suas meias, de sua blusa roxa e saia tom pastel. Eu beijava e cheirava suas dobras, seu jeito infeliz e semi-serrado. Sem ao menos desencostar da parede, eu ia e vinha sobre suas orelhas e dedos dos pés. Ela falava. O mundo, o dinheiro, o estudo. Tirar os sapatos. O tango num canto repartido. Roxane, talvez. Quando pedi para que entrasse no carro. Seu cheiro de talco com jasmim. Quando perguntei o valor da entrada, o preço do gosto. Quando perguntei, não percebi a luminescência do toque. O valor do barato. Há no corte o nulo. Eu sempre faço isso, mas nunca assim. Basta quinze minutos, alguns minutos, e passo logo a marcha e vou embora. Mais um chiclete, papel, lata de lixo. Elas ficam de olhos servidos, ignorantes. Mas quando pedi que entrasse no carro não suspeitei que ficaria encantado. Em nenhuma esquina, em nenhum bar, nenhuma das outras, nenhuma parecia se derramar, assim, sobre os travesseiros. A parede fria era a única coisa tranqüila. A parede como anzol impedindo meu ataque. Eu assim. Um respeito desnecessário. Uma hesitação de filatelista. A parede e seu papel de enfeite gasto e colorido iam pelas tangentes da cama e conduziam minha retina, que tocava a covinha em seu rosto, beijava cada linha de suas dobras... Meus dedos furavam a covinha sentindo sua saliva. Sua blusa roxa. As cortinas de renda azul, na janela que nem uma estrela cabia, sem ar, sem entender a minha falta de ação. De uso. Ela no tom profissional, tagarelando um som vazio. A gravata mantendo meu rosto de sorriso simpático. Meus dedos se apertando por trás das minhas costas, a linha da minha espinha latejando. Eu poderia ficar ali e não ouvir e não agir e não pagar. Eu podia ficar ali configurando aquele arranjo. Imaginando beijando-o e cheirando. Tentando entender aquele terno caro vendido em um brechó. Buscando alguma história, algum motivo social, esotérico para não tirar a roupa dela, minha, cobrar a hipoteca, parar de olhar, só olhar. Algo com minha mãe, minha avó de parte de pai. Algo nos amigos da escola, no casamento mal conduzido. Algo nas formigas vermelhas que passeavam pela parede do apartamento de meus primos, algo assim que me dissesse porque eu simplesmente não consumia daquela vitela, mordia, e se não estivesse satisfeito: pagava mais e mais e mais até o dia deixar as fofocas e conduzir os sussurros da noite. Nem para tudo existe sentido, nem para todas as histórias uma curva dramática. Dei alguns passos, desfazendo o nó. Os botões. Ela entendendo deixou o seio cair para fora, tomar ar. Meu ar. O tom escuro, o bico gasto. Ar. Os passos fizeram olhos, e eu parei saboreando mais da vista daquela poça de lama, onde os matizes da sujeira eram dos mais ternos. Há no corte, assim, um pleitear da verdade. Ele bateu a porta e entrou. Urrando. Falando coisas e assustando. Ela. Eu. Nomes óbvios, que não ofendiam. Ela levantou, balançando a mama em cada palavra e apontada de dedo. Eu chupando a aureola, descobrindo mais daqueles pêlos e pintas. Há no corte uma subtração das respostas. O aplauso que encerra o espetáculo. Ele rasgou o pescoço dela. Às paredes à cama o sangue. Ela se fez em panos e antes de cair no colchão de solteiro bateu o rosto na parede. Ele nem olhou para mim. Eu nem ouvi o que ela dizia. Meu grito. O pequeno motel de cantos verdes. Algumas mulheres entraram. O grito delas. Há no corte uma piedade. Derrubei o único vaso, no canto sobre o banco, para que o barulho dos cacos cortasse a insubstituível sensação do absurdo. Tentava desembaraçar o novelo e contar o acontecido: a porta, tão perto da cama, a porta, tão destrancada. O braço forte. Pele amarela. O corte tão legista. A parede como anzol. Era só, um desafeto, disseram. Ficamos a sós mais uma vez. Ali. Ela ainda espalhada pelo quarto, ainda de pernas sobrepostas, mudas. Há no corte uma provocação. Debrucei sobre ela e beijei cada linha de suas meias, de suas dobras, de sua blusa roxa e de sua saia tom pastel. Esperando ouvir novamente o tango. Roxane, talvez.



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Claudio Brites nasceu em 1983 em São Paulo. Atualmente cursa mestrado em Lingüística, onde estuda o uso de metanarrativas e metapoemas no desenvolvimento da prática de escrita. Publicou contos e crônicas em antologias e sites, organizou três livros: Prática de escrita: poesia (2006), Livro negro dos vampiros (contos, 2007) e Anno domini: manuscritos medievais (contos, 2008), este último em parceria com a escritora Helena Gomes. Bloga em http://www.hipocentro.blogspot.com.

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