ZUNÁI - Revista de poesia & debates

 

 

DEGOLA-RIOS

(de um diário encontrado

nas toilettes do Hotel D'Azur)

 

 

Antônio Cabrita

 

(preâmbulo)

 

 

O casamento é uma espionagem sabotada, duas potências que galgam oceanos para encalhar em travesseiros onde se entregam ao exercício de contar os invisíveis cabelos de Deus. Mas pode um mamífero ser tão taciturno?

 

  

Dia 15

 

 

i

 

Remira pela janela as marés vivas da Bretanha.  Suspira - o coração atrelado ao desatino do mar. Apesar do vento de uma vida,  ao seu lado o futuro tresanda: será do crânio forrado a papel de parede?

 

ii

 

Suspira. Basta-lhe chegar. Ao aeroporto, à charcutaria, ao fim dum espectáculo. Basta-lhe chegar e suspira. Como quando detectou no corredor do hotel dois homens na sombra e chegou ao susto daquele beijo que exalava uma sede de quilómetros.

 

   

iii

 

Corre na gazua, a hora em que os bares exumam a carne e a sede?

À sua maneira executámos o amor de um modo perfeito pois quando ocorreu já ninguém estava.

Insone, ao seu lado, a alba dedilha no galo a morte próxima.

 

 

iv

 

'A lânguida cabeça  dos mortos', escreveu Homero há vinte e cinco séculos.

Apega-se ao sonho com grampos de carne.

É o que lhe fica bem: o sorriso lânguido da morte prematura.

 

 

v

 

A lembrança daquele linguado devolveu-me aos salgueiros da margem.

Parece mentira, um ribeiro com linguados em plena Bretanha.

 

 

Dia 16

 

É nítido, a soma dos seus fracassos arrombou-lhe a capacidade para de si sair.

Encontrasse Scherezade, que nunca saltava os parágrafos e enfiava a língua entre a grande pálpebra e a glande, salivando com detida urgência os ovos, e poderia morrer de uma palavra prolongada.

 

 

Dia 17 

 

(sala de jantar)

 

i

 

"Frígida bretã procura vedor que lhe extravase o bateau ivre " - o que devia estar apenso à porta em vez do Não Incomode

 

ii

 

«A minha cabeça é a trave de vinho que suporta o firmamento».

Tossicou sobre o ventre exúbere antes de sublinhar numa voz encorpada por muita vinha d'alho: «A impaciência dos limites: aqui está a festa que os deuses desconhecem»

 

  

iii

 

Confidencia ao gourmet: «Deixarei a minha fortuna aos mais velhos e nada ao bastardo - o meu preferido -  se prometerem que me incineram a alma»

  

iv

 

Sedução marsupial: abusus non tollit usu. Êxul e desesperançado  (como diz sempre),

envia a mulher à frente para saber como eles fodem.

 

 

v

 

Se ao menos aos 60 lhe desse para arriscar um crédito e o gastasse em casa, seis meses a forrar as penumbras com a própria pele enquanto lia O Amor Natural do Drummond ou O Jogador do Dostoievsky - seria um maçador com futuro.

 

  

Dia 18

 

Depois do charuto, pôs-se a apreciar o baile, os pares, o brilho de um relógio mole na retina da mulher. Pensou: hum, ao menos eu  amadureci, não me importo nada que a beleza me passe ao lado, desde que eu possa assistir.

Mas depois ocorreu-lhe: só a morte é que dá borlas. E ao som da música  pôs-se determinado a bater o pé, com uma energia expansiva, como se manco fosse  unicamente o deus que espreita.

  

 

Dia 19

 

i

 

Palavras que ressaltam ao espelho e chapinham na sua nudez:  as mamas da camareira

despenham-se nas suas mãos.

 

 

ii

 

Saia subida até ao pináculo das vogais, sulco onde uma unha pertinaz aceitaria asilo,

amolecer.

 

iii

 

Passou a cabeça por um mata-borrão. É inútil procurar mais atrás. Um só mata-borrão vaporiza os trinados do rouxinol, mesmo num desenho  de Leonardo. Basta. Nela bastou e a carne esmoreceu logo de infância, à cabra-cega.

 

iv

 

Em pé de flanco ou de bruços,  nenhum látego. Mas ninguém colecciona sentimentos como ela.

 

v

 

Tudo reflui. Menos os anos dependurados no cabide errado. 'Amor, coração...' Palavras que fiei ao inimigo.

 

 vi

 

Azada mexerica mas não aprende que trompete é feminino. Anos sem que o sexo colha o grão da noite. Diz sempre que lhe basta chegar à Bretanha. Chegou, com a ads-tringência de uma vespa. Memorizará a vespa que trompete é feminino?

 

  

vii

 

"Sim, sim vai andando amore, não, não me esquecerei da toalha..." : o amor é a piscina onde crescem os náufragos.

 

  

Dia 20

  

Por duas vezes, na praia, à beira de lhe contar a verdade sobre os meus adultério e dois guarda-sóis içaram-se com o vento, ficando um instante suspensos, a pairar, antes de galgarem céu acima

 

  

Dia 21

 

 

Na marginal da Póvoa existe o talho Eça de Queirós. E não é o mais justo? Não me espanta se encontrar aqui uma loja  de corais e selos  e moedas com o nome «Guillevic».

Dia 22

 

 

i

 

Bandeira vermelha.

Nem uma réstia de membro firme, depois de doze anos de férias na Bretanha e do jactante leronin da fêmea.

Do exterior de tudo te encarregas embora clames por estar dentro.

 

 

ii

 

Dava-se um copo a uma actriz vulgar e ela repisava a ideia: 'era mesmo isto que me apetecia'.

A Bacall olhava primeiro a janela pegava no copo e disparava: 'Sim,  esta chuva deixa-me triste', antes de o emborcar duma vez.

Fizesse sol, as pessoas acreditavam.

Sempre que dou um copo à minha mulher ela primeiro vê se está sujo.

 

 

iii

 

Era lisonjeiro. Ter arroubos com várias mulheres casadas era lisonjeiro. Mas nunca consegui que num ímpeto de paixão desacautelassem maridos. Isso minou-me a confiança e fixei-me nos limos tristes da esposa.

Solteiras nunca admiti no pombal. Cobiçava mulheres com barco e o desafio de extraviá-las na âncora. Acabei agarrado aos limes tristes da consorte.

'Degola-Rios', a minha alcunha de infância. Acredita-se?

 

 

iv

 

 

O seu corpo era a algibeira do meio.

Aqui, entre salgueiros, onde venho matar o meu gin, gostava que o meu corpo fosse a algibeira do meio.

 

 

 Dia 23

 

 i

 

Toda a noite a avaliar a distância galáctica entre o meu lóbulo e os seus dentes enquanto o malte bramava no bigode  e recordava O Tufão de Conrad.

 

 

ii

 

Estava tudo montado p' ra que o meu beijo tropeçasse no ar.

 

 

iii

 

Capaz dos grandes gestos mas não do amor.

Defenestrado p'los grandes gestos quando o amor, como o futuro se verte em míseras

gotas turvas.

 

 

iv

 

Dum só golpe, o prazer agarrado ao vento. Mão que cinde a temperatura e o corpo pelos quadris.Dum só golpe ofuscar vitrais, a vindoura face do tempo. Com o intrínseco e o extrínseco em rítmica  e mútua dissipação.

 

 

v

 

Estava lá Daumal inteirado sobre os alegres desacatos a que pode levar o desejo quando escreveu «la triste aveugle vallé de la peau humaine» !

 

   

Dia 24

 

  

Deus não concede qualquer crédito antes de medir a intensidade  com que o sangue porfia na finisterra do desejo.

E não nos vale trocar Deus por 'futuro' ou por 'alma', pois aí seria um débito.

 

   

Dia 25

  

i

 

Em Carnac. Empurrá-la. Que o abismo lhe escave um prontuário na fronte e a espuma

do mar lhe ventile as junções.

Deixar qu' Ele se compadeça e nos carbonize.

 

 

ii

 

Nenhum silêncio é mais baldio que o olhar dela: urzes e tranquilizantes.

Uma inteligência que ainda peleja a vapor contra a evidência das imagens e que de contínuo procura galho - e isso é o menos!

O pior são os olhos, despigmentados por séculos de afeição.

 

 

iii

 

O mar petrifica na sua boca, a sua voz espaneja toda a esperança.

Ao nascer entre-abriu-se-lhe um postigo: mira a que se ajustaram o tédio, a senectude

e outros rastejantes.

 

 

iv

 

Em Carnac - ainda que sobeje a luz e apeteça .....................

o imparcial grasnar das gaivotas faz-me adivinhar a gabardina cinzenta de Deus e fico impróprio.

Há uma dúzia de anos nisto: vir a Carnac pela inverosímil prece com que baldeio palavras.

 

  

Dia 26

  

O cerne é uma hélice que te cai aos pés. Uma vida a supor 'é de tilia a semente'.

E em Tréguier, mais triste que Ovídio em  Tomes, - enfim - com um Monte Cristo

a desenfiar-me  a memória,  à sombra duma acácia, cai-me a hélice aos pés.

O cerne é uma vida que o engano engolfa.

 

  

Dia 27

 

 

i

 

Não se falseia o equilíbrio, ou levanta-se o sol matinalmente para reparar um mal?

É sabido, o Oryx é famoso por sobreviver  tempos infindos sem beber.

Mas o Apocalipse fala de novos Céus  e da nova Terra e será lícito aspirar aos vincos da lua, a um açude de tremores íntimos & anónimos, a algo mais que um rosto que suspira em suficiência.

  

ii

 

A nossa capacidade de emoção é baga estrita.

Primeiro vara e como a malagueta faz-nos brilhar os olhos, depois acomoda-nos à persuasão: o dano há-de resolver-se.

Só a poluição dos oceanos se confirmou indelével, sem erro -  e o amor é um dos seus tantos detritos visíveis.

 

 

Dia 28

 

(releitura de Gillevic)

 

i

 

'Qu´est-ce/ qu'il y a donc/ de plus ronde/ que la pomme ?'

A desilusão, a cobardia, o melro que ninguém escuta, o desejo que o vento desossou.

 

 

ii

 

'L'éau/ de toute façon.// Que ce soit avant/ Ou après la mort/ De la bactérie '.

Fadiga do riso ?

 

 

  

iii

 

Ah, a inaptidão com que o corpo de si mesmo escapa em letras tão fátuas como o musgo seco dos menires:

'le poéme fait chanter/ le silence,/ améne jusqu'à toucher/ une autre silence,/ encore plus silence '.

Ah, o firmamento dos poetas que vêem no silêncio um dedal.

 

 

Dia 29

 

 

Em Carnac ou no Bugio? De faca ou de empurrão? Amplificação pela fonte?

Não me lembro de maior pendor que a do espinho na rosa.

 

 

Dia 30

 

 

Se a coragem picasse o ponto.

Antes do amor somos como insectos prontos a devorar-nos uns aos outros. E depois do amor?

Agatão, um padre  do deserto, guardou um calhau  na boca durante três anos, até aprender a calar-se. Nem a sombra dos canaviais (se) ouvia.

Há doze anos que mastigo a reforma com as pedras de Carnac, mas de que serve a forma física, circunscrever o intruso, o gosto dos bivalves, um pau de lascívia, se o coração de amor não se arruina e só colhe a intratável visão de uma neve uterina?

 

 

Dia 31

 

A faca não atingiu nenhuma artéria, folgou onde o âmago anoitece a carne, mas não floriu.

 

 

(Qualis vita, finis ita)

 

No umbral dos anos que passam, ei-la: dá grilos aos corvos.

Lúgubres murcham com ela os meses: dá grilos aos corvos.

Disponho-me a amá-la nove vezes seguidas numa noite?

A insípida dá grilos aos corvos.

Antes da primeira colheita dos nossos beijos  já ela dava grilos aos corvos.

Se um familiar pergunta «és feliz», responde «como Castor e Polux tenho um gorro frígio» e com uma  pinça  dá grilos aos corvos.

Por isso já não aguento viver em Lisboa.

 

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Antonio Cabrita, poeta e ficcionista português, reside hoje em Moçambique.

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